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26 de Abril de 2024
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    Homicídio para a retirada de órgãos: competência da Justiça Estadual ou Federal?

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Pesquisadoras: Patricia Donati e Daniella Parra.

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. DONATI, Patricia. PARRA, Daniella. Homicídio para a retirada de órgãos: competência da Justiça Estadual ou Federal? Disponível em http://www.lfg.com.br 08 julho. 2009.

    Se o sujeito pratica o crime de homicídio para o fim de retirar órgãos do corpo da vítima, o fato seria da competência da Justiça Estadual ou Federal? Trata-se de crime único ou de crimes autônomos?

    Proposições possíveis, dentre outras:

    Respostas dadas no CC 103599 (Terceira Seção do STJ)

    a) o crime seria único, pois, diante da aplicação do princípio da consunção, o delito de homicídio absorve o crime de retirada de órgãos.

    Assertiva ao que tudo indica verdadeira para a Terceira Seção do STJ (mas dela discordamos).

    b) o crime é único, pois, o crime de retirada de órgãos absorve o de homicídio.

    Assertiva falsa

    c) são crimes autônomos, que justificam a incidência das regras do concurso material de crimes.

    Assertiva ao que tudo indica falsa para a Terceira Seção do STJ (mas dela discordamos)

    d) em sendo crime único e, prevalecendo o homicídio, a competência é da Justiça Estadual.

    Assertiva verdadeira

    e) em sendo crime único, prevalecendo o delito de retirada de órgão, a competência é da Justiça Federal.

    Assertiva falsa

    f) ao reconhecê-los como crimes autônomos, diante da aplicação da força atrativa, restaria evidenciada a competência da Justiça Federal.

    Assertiva falsa

    Notícia publicada pela assessoria de imprensa do STJ (referente ao Processo : CC 103599) : Homicídio para retirada de órgãos deve ser julgado pela Justiça estadual. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o processamento pela Justiça estadual da ação penal que trata da morte de um menino para retirada de seus órgãos. O crime teria ocorrido no ano 2000, em Poços de Caldas (MG). O processo já estava em fase adiantada [pronúncia] na Justiça Federal, mas foi suspenso em razão de um conflito de competência. A Terceira Seção entendeu que a remoção dos órgãos do menino foi consequência da ação de homicídio, esta sim a ação principal. A decisão baseou-se no voto do relator, ministro Nilson Naves. Conforme o ministro destacou, sendo o homicídio a ação principal, a competência é da Justiça estadual. O ministro ainda afirmou que não há ente federal (União, autarquia, empresa pública ou seus membros) no pólo passivo (respondendo a ação). Além do que, o fato de a denúncia afirmar que os acusados removeram tecidos, órgãos ou partes do cadáver da vítima em desacordo com o que determina a legislação não atrai, por si só, a competência federal. De acordo com a denúncia, o menino P.V.P., de 10 anos, foi internado após um acidente doméstico que lhe provocou traumatismo craniano. Ele teria sido negligenciado no atendimento hospitalar com a intenção de provocar sua morte para retirada posterior dos órgãos. O Ministério Público afirma que sua admissão foi em hospital inadequado; houve demora no atendimento; a cirurgia craniana foi realizada por profissional sem habilitação; não houve tratamento efetivo; os exames que constaram morte encefálica foram engodo; houve abandono terapêutico. Em agosto de 2002, o juízo federal da 4ª Vara Criminal de Belo Horizonte declarou-se competente em razão da existência de conexão entre delitos de homicídio e aquele previsto no artigo 14 da Lei 9.434/2007, a Lei dos Transplantes de Órgãos - mais especificamente "remover tecidos, órgãos e partes do cadáver" do menino em desacordo com o que determina a lei. As defesas de dois acusados alegaram a incompetência absoluta da Justiça Federal para julgar a ação, o que foi acolhido por outro juiz que havia assumido o caso. Os autos foram remetidos para a comarca de Poços de Caldas, sendo anulados todos os atos decisórios da Justiça Federal. O juiz estadual, por sua vez, entendeu que o crime de homicídio seria um meio para a obtenção dos órgãos, o que ensejaria a competência federal. De acordo com o juiz estadual, teria havido prejuízo à União, pois o suposto crime teria atingido um dos serviços públicos prestados à sociedade (Sistema Nacional de Transplantes). Daí o conflito remetido ao STJ, que reconhece a competência estadual para analisar o caso.

    Comentários: não há como admitir a competência da Justiça Federal neste caso. Nenhuma das hipóteses do art. 109 da CF acha-se presente. A afetação de um serviço público nacional, de forma indireta, não conduz o caso para a Justiça Federal. Para que o processo seja remetido para a Justiça Federal impõe-se que a infração seja praticada em detrimento de bens, serviços ou interesse (diretos) da União. Tem que entrar em pauta, acima de tudo, um interesse público concreto, uma afetação real, efetiva, da União. A retirada de órgãos (indevida) de uma pessoa afeta, antes de tudo, bens particulares (de uma única pessoa). Esse fato não coloca em risco diretamente o Sistema Nacional de Transplantes, que continua valendo e não foi danificado ou prejudicado (concretamente). A violação de bens jurídicos personalíssimos (vida, integridade física etc.) tem que ser tratada dessa forma, ou seja, antropologicamente (não estatalmente). Não se pode publicizar os bens jurídicos pessoais, porque o indivíduo não se confunde com o Estado. Na morte de uma criança e a retirada de órgãos não há nenhum interesse público da União diretamente envolvido. Logo, a competência para o julgamento dos dois delitos (homicídio e retirada indevida de órgãos) é da Justiça Estadual (de acordo com nossa opinião).

    Para melhor compreender o caso, analisemos as posições adotadas pela Justiça Federal, Estadual e pelo STJ.

    De início, a Justiça Estadual se declarou incompetente, justamente por reconhecer o crime de homicídio como crime meio para a obtenção dos órgãos (crime que seria da competência da Justiça Federal).

    Nessa mesma linha, o magistrado federal reconheceu a competência da Justiça Federal, em razão da conexão entre delitos de homicídio e aquele previsto no artigo 14 da Lei 9.434/2007.

    No entanto, esse não foi o entendimento adotado pelo juiz substituto que, ao assumir o caso, declarou-se incompetente, dando ensejo ao conflito de competência decidido pela Terceira Seção do STJ.

    De acordo com o entendimento firmado pelo órgão julgador, a remoção dos órgãos da vítima deve ser compreendida como consequência da ação de homicídio. E, esse sim, a ação principal.

    Tratar-se-ia, assim, de hipótese de aplicação do princípio da consunção em que o delito de homicídio absorve o crime de remoção de órgãos, considerado simples exaurimento. Ou, numa outra visão, de um concurso de crimes, de qualquer maneira, a ação principal é o homicídio.

    Do que se vê, são três as posições que podem ser extraídas dos magistrados envolvidos na análise do caso em comento: a) a que acaba de ser analisada, proferida pela Terceira Seção do STJ (prevalência do homicídio, como infração principal); b) o entendimento do magistrado estadual (titular) que também traz hipótese de consunção, mas, do delito de retirada de órgãos em relação ao homicídio (esse, considerado crime meio); c) a teoria adotada pelo magistrado federal, relacionada à existência de conexão entre os dois crimes e a prevalência da força atrativa da Justiça Federal.

    Nossa opinião: da forma como foram narrados os fatos, nos parece que o homicídio fora praticado em sua forma omissiva (homicídio por omissão - art. 13, § 2º "o omitente devia e podia agir para evitar o resultado"), buscando, justamente, a retirada dos órgãos. Desta feita, resta evidenciada a existência de dois atos que, embora ligados pela conexão, não deixam de ser autônomos.

    A nosso ver, não seria absurdo falar em concurso material de crimes (CP, art. 69: "Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes, idênticos ou não, aplicam-se cumulativamente as penas privativas de liberdade em que haja incorrido. No caso de aplicação cumulativa de penas de reclusão e de detenção, executa-se primeiro aquela").

    Foram duas as condutas praticadas. A primeira delas, a omissão no tratamento da vítima e, a segunda, a retirada dos seus órgãos. Não tendo pertinência levar o caso para a Justiça Federal, os dois delitos são da competência da Justiça Estadual.

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