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26 de Abril de 2024
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    FIGURAÇA: O LEGISLADOR BRASILEIRO (não se pode por lei ofender a natureza das coisas)

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Inconstitucionalidade e inconvencionalidade do texto (2º do art. 109) aprovado pelo Senado Federal brasileiro: o Senado Federal aprovou a "imprescritibilidade de crimes contra a humanidade". Esses crimes, como vimos (nas partes I, II e III, já publicadas), são imprescritíveis por força do ius cogens (instrumentos da ONU de 1946), de vários tratados internacionais, da jurisprudência internacional assim como da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. De acordo com nossa conclusão, também é possível vislumbrar essa imprescritibilidade (dos crimes contra a humanidade) no art. , LIV, da CF.

    São três as situações de imprescritibilidade hoje no Brasil: (a) racismo, (b) ação de grupo armado contra o Estado constitucional e democrático e (c) crimes contra a humanidade (que, para nós, seria apenas uma explicitação da situação b precedente).

    O que está pretendendo (agora) o legislador brasileiro? Criar uma nova situação de imprescritibilidade, nos crimes sexuais. Nos termos da nova redação do 2º, do art. 109, do CP (que ainda depende de sanção do Presidente da República), se cometidos de modo generalizado ou sistemático, são imprescritíveis: I os crimes previstos nos arts. 213, 217, 218-B e 228; II os crimes previstos nos arts. 231 e 231-A, quando praticados contra menores de 18 (dezoito) anos."(NR).

    Esses crimes sexuais, de acordo com a inovação legislativa, passariam a ser imprescritíveis, quando cometidos de modo generalizado ou sistemático. O objetivo do novo texto, claro, consiste em evitar a impunidade desses delitos (ad aeternum).

    Das seis exigências inerentes aos crimes contra a humanidade - (a) atos desumanos (assassinatos, extermínios, desaparecimentos, crimes sexuais etc.), (b) generalizados ou sistemáticos, praticados (c) contra a população civil, (d) durante conflito armado, (e) correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promoveram essa política, (f) com conhecimento desses agentes o legislador brasileiro valeu-se de apenas uma delas (atos generalizados ou sistemáticos) para caracterizar alguns crimes sexuais como crimes contra a humanidade.

    Erro crasso do legislador: o legislador (sob pena de se transformar em figuraça universal) não pode, por meio de uma lei, chamar de crime contra a humanidade o que não é crime contra a humanidade. Pelo que ele escreveu, os crimes sexuais referidos, desde que generalizados ou sistemáticos, seriam crimes contra a humanidade (e imprescritíveis). Erro crasso! Para a configuração de um crime contra a humanidade pelo menos seis exigências são necessárias (como vimos). Uma só das suas notas não é suficiente para isso.

    Em outras palavras: o legislador está chamando (repita-se) de crime contra a humanidade o que não é crime contra a humanidade. Os crimes sexuais podem ser taxados como tal (sendo, portanto, imprescritíveis), desde que (a) generalizados ou sistemáticos, praticados (b) contra a população civil, (c) durante conflito armado, (d) correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promoveram essa política, (e) com conhecimento desses agentes. Não basta a nota da generalidade ou sistematicidade.

    Conclusão: o novo texto legal é inconstitucional (porque estaria o legislador criando uma nova situação de imprescritibilidade, sem ter poderes para isso) e inconvencional (por contrariar todos os tratados e convenções internacionais, no que diz respeito à definição do crime contra a humanidade). Cuida-se, assim, de texto inválido (que não pode ser aplicado por nenhum juiz ou tribunal brasileiro).

    O legislador brasileiro legisla contra a natureza das coisas: o legislador nacional, às vezes, pensa que, pela lei, pode contrariar a natureza das coisas. Ledo engano (para não dizer que se trata de um ato ridículo). Os absurdos escritos por ele não podem gerar nenhum efeito jurídico. São normas inválidas (por contrariam o senso comum). O legislador não pode dizer que, doravante, todas as mulheres terão que dar à luz no sexto mês de gestação. Isso contraria a natureza das coisas. O legislador não pode afirmar, numa lei, que as águas dos rios, doravante, passam a correr para a nascente (ou seja, a montante). O texto legal seria publicado e as águas continuariam correndo a jusante (para baixo). O legislador não pode, por lei, acabar com a força da gravidade. Não pode, por lei, afirmar que uma criança de dez anos de idade passa a ser considerada idosa. Não pode, por lei, fazer com que o homem cumpra a função de amamentação (nem que se menstrue, nem que entre em processo de gestação).

    Conclusão: não se muda a realidade das coisas pela lei. O legislador, pela lei, não pode afirmar que uma situação x configura crime contra a humanidade, se não presentes todos os seus requisitos.

    O legislador não tem os poderes do Rei Midas: o legislador brasileiro, às vezes, pensa que tem poderes semelhantes ao do Rei Midas. O Rei Midas (pelo que se lê na Wikipedia) realmente existiu. Em 1969, pesquisadores do Museu de Arqueologia e Antropologia da University of Pennsylvania sob a liderança de Rodney Young, após escavações na Turquia, em Gordiom (hoje Yassihüyük), antíga capital da Frígia, localizaram o túmulo de Midas.

    Túmulo de Midas

    Mito do toque de ouro: certa vez Baco (ou Dionísio, deus do vinho) deu por falta de seu mestre e pai de criação, Sileno. O velho andara bebendo e, tendo perdido o caminho, foi encontrado por alguns camponeses que o levaram ao seu rei, Midas. Midas reconheceu-o, tratou-o com hospitalidade, conservando-o em sua companhia durante dez dias e dez noites, no meio de grande alegria.

    No décimo-primeiro dia, levou Sileno de volta e entregou-o são e salvo a seu pupilo. Baco ofereceu, então, a Midas o direito de escolher a recompensa que desejasse, qualquer que fosse ela. Midas pediu que tudo em que tocasse imediatamente fosse mudado em ouro. Baco consentiu, embora pesaroso por não ter ele feito uma escolha melhor.

    Conclusão: muitas vezes o legislador brasileiro pensa que é Midas. Que onde ele toca ele transforma a realidade. Não é assim. Os crimes sexuais descritos por ele no novo 2º do art. 109 do CP (aprovado pelo Senado Federal), da forma como foram demarcados, não são crimes contra a humanidade. Logo, tampouco são crimes imprescritíveis (ou seja: devem seguir, em relação à prescrição, as regras gerais do CP).

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/figuraca-o-legislador-brasileiro-nao-se-pode-por-lei-ofender-a-natureza-das-coisas/1661672

    1 Comentário

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    Gostei da estória de Midas, o rei pode ter existido, mas seu poder é carochinha. É semelhante ao legislador nacional, pois toma uma série de atitudes racionais e transforma numa loucura o produto final, como pode um rei sensato escolher com tantas trevas sua recompensa? Não somos assim por aqui? Trocamos ouro por espelhinhos, olha o paradoxo, o rei quis ouro. Racionalizamos invertido e sem conhecimento de causa.

    O pensar do legislador é produto do que fazemos nas urnas, glamorizamos o proletário sem letra, o palhaço, o jogador de bola, a mulher por ser mulher (legal, agora temos uma mulher no planalto, não importa se é competente ou não), falta o negro por ser negro e o gay por ser gay e precisamos de um ex-presidiário, afinal ressocializar e respeitar a dignidade humana é a bola da década e até mesmo amamos as pessoas sem contar sua história, seu passado, veja ai o paradoxo, imprescritíveis praticados por grupos armados contra a população civil e não é justamente o que foi feito pelos que ocupam o planalto hoje, tendo em vista que naquela época não havia Const 88, mas tem história.

    As armas que a constituição reconhece quais são? Aquelas que tiram a vida humana ou aleijam? Revolveres, fuzis etc. Não considera as armas intelectuais que permite abalroar o país e sucateá-lo como hoje estamos vendo. As físicas produzem um resultado que pode ser superado, mas a intelectual raramente. continuar lendo