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20 de Abril de 2024
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    Aborto Anencefálico: Exclusão da Tipicidade Material

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br)

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Pesquisadora: Áurea Maria Ferraz de Sousa.

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. SOUSA, Áurea Maria Ferraz. Aborto Anencefálico: Exclusão da Tipicidade Material. Disponível em http://www.lfg.com.br - 19 agosto de 2009.

    Decisão de primeira instância proferida pelo juiz da 2ª Vara Criminal de Goiânia autorizou interrupção de gravidez de uma estudante M.L.S, por estar grávida de um feto que apresenta anencefalia, o que acarreta expectativa de vida muito curta (ou nula). Questionamentos:

    1º) É típica a conduta de quem provoca aborto em si mesma ou consente que alguém assim o faça?

    Sim (em regra). Do ponto de vista legal é típica a prática do aborto, sendo previsto no Código Penal o crime de aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento, no artigo 124.

    2º) Agiu acertadamente o juiz da 2ª Vara Criminal de Goiânia em autorizar a prática do aborto em comento?

    Sim. Em verdade, a prática da interrupção da gravidez, como se apresenta, não pode ser configurada como aborto, pois não se pode falar em tipicidade material dessa conduta.

    3º) Qual o fundamento para que o juízo afaste norma legal e autorize interrupção da gravidez da jovem?

    A decisão leva em conta a exclusão da tipicidade material, bem como, fundamenta-se na necessidade da consideração do valor da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil (art. , III, CF).

    Notícia publicada pelo IBDFAM (www.ibdefam.com.br) Juiz autoriza aborto de feto anencéfalo. O juiz Antônio Fernandes de Oliveira, despachando na 2ª Vara Criminal de Goiânia, concedeu, na última segunda-feira (3), autorização para interrupção de gravidez à estudante M.L.S. A requerente está grávida há 21 semanas, mas o feto apresenta anencefalia, má formação caracterizada pela ausência parcial do encéfalo, o que inviabiliza suas chances de sobrevida. Ao decidir sobre o caso, o juiz analisou que a situação da estudante não se enquadra em nenhum dos dois casos de aborto legal previstos no Código Penal, já que a gravidez não é resultante de estupro, nem oferece riscos à vida da gestante. Entretanto, Antônio Fernandes entendeu que não é razoável exigir que estudante passe pelo sofrimento de uma gravidez frustrada, imputando-lhe danos físicos e psicológicos e ferindo sua dignidade. "Não podemos também negar que atualmente o aborto é considerado um problema social, que deve ser objeto de políticas públicas, já que os procedimentos realizados de forma clandestina causam de 10% a 15% de todas as mortes maternas no País", afirma o juiz em sua sentença. A interrupção da gravidez deve ser realizada no Hospital Materno Infantil.

    Comentários: o tipo penal nos crimes dolosos (de acordo com a teoria constitucionalista do delito que adotamos) é a soma da tipicidade formal (ou objetiva) + tipicidade material (ou normativa) + tipicidade subjetiva. Da tipicidade material fazem parte dois juízos valorativos distintos: (a) juízo de desaprovação da conduta e (b) juízo de desaprovação do resultado jurídico.

    O resultado jurídico (lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico) para ser desvalioso (desaprovado) precisa reunir seis características: (a) concreto; (b) transcendental; (c) grave (não insignificante), (d) intolerável, (e) objetivamente imputável ao risco criado e (f) que o resultado esteja no âmbito de proteção da norma.

    A quarta exigência que advém do resultado jurídico desvalioso é a intolerabilidade da ofensa. A ofensa, portanto, além de real, transcendental e grave, deve ser também intolerável (desarrazoada). Seja por força da exigência de que relevante somente pode ser a ofensa intolerável (princípio da fragmentariedade do Direito penal), seja em razão da teoria da adequação social, o fato é atípico quando não perturba (ou não perturba seriamente ou não perturba desarrazoadamente) o convívio social justamente porque a ofensa ou é tolerada (aceita) pela (quase) unanimidade da comunidade ou não é desarrazoada.

    Do exposto cabe concluir que não há resultado jurídico desvalioso quando o resultado não é desarrazoado (ou arbitrário ou injusto). Esse é o fundamento jurídico para não se reconhecer crime (fato típico) na conduta de quem pratica o chamado aborto anencefálico, que gera uma morte, porém, não desarrazoada ou arbitrária. E por que não é arbitrária? Porque a sobrevivência do feto está comprometida (em razão da anencefalia). Constatada (médica e cientificamente) que a sobrevida é praticamente impossível (inviável), a antecipação da morte (via aborto) não é desarrazoada. A vida é um direito inviolável, ninguém pode dela ser privado desarrazoadamente (art. 4º da CADH).

    Há ainda que se considerar que reconhecer a dignidade da pessoa humana como valor a ser defendido pela ordem jurídica é considerar que há que se defender sim a vida humana, mas uma vida digna. No caso em apreço, há que se defender a vida digna não só do feto, mas principalmente da gestante que há de ter a discricionariedade de optar por dar continuidade a uma gravidez provavelmente frustrada ou não.

    No filme Vida Severina (que recomendo) mostra-se, com clareza, o quanto que um feto anencefálico inviável afeta a dignidade humana.

    A questão ainda está pendente de decisão no Supremo, sendo que no último informativo a respeito da matéria (Informativo 385) noticiou-se o entendimento do Ministro Sepúlveda Pertence, que refutou o fundamento de que a ADPF 54 se reduziria a requerer a inclusão de uma terceira alínea no artigo 128 do CP, por considerar que a pretensão formulada é no sentido de se declarar, em homenagem aos princípios constitucionais aventados, não a exclusão de punibilidade, mas a atipicidade do fato. Entendimento que se coaduna com o nosso, a questão se revela solucionada com a aplicação do conceito de o fato há de ser formal e materialmente típico. Por força da teoria constitucionalista do delito que adotamos torna-se possível (acreditamos) fundamentar dogmaticamente a exclusão da tipicidade (no caso do aborto anencefálico).

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