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20 de Abril de 2024
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    Princípio da justiça universal: Espanha restringe sua aplicação

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Pesquisadora: Patricia Donati.

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Princípio da Justiça Universal: Espanha estringe sua aplicação. Disponível em http://www.lfg.com.br - 26 outubro. 2009.

    Princípio da justiça universal no Brasil: de todas as hipóteses de extraterritorialidade incondicionada (CP, art. 7.o, I) apenas uma delas se relaciona com o princípio da justiça universal, que é a descrita na alínea d, do art. 7.º, I, do CP: "genocídio, quando o agente for brasileiro ou domiciliado no Brasil". Outra hipótese de incidência do princípio citado, na nossa legislação, está contida no art. 7.º, II, do mesmo Código: crimes que, por tratado ou convenção, o Brasil se obrigou a reprimir. A diferença entre as duas situações está em que, na primeira, a extraterritorialidade é incondicionada (não depende de nenhuma condição), e na segunda ela é condicionada (depende do concurso de uma série de condições, previstas no art. 7.º, 2.º, do CP: a. entrar o agente no território brasileiro não importa que depois tenha saído; b. ser o fato punível também no país em que foi praticado; c. estar o crime incluído entre aqueles pelos quais a lei brasileira autoriza a extradição; d. não ter sido o agente absolvido no estrangeiro ou não ter aí cumprido a pena leia-se: se o agente foi só processado no estrangeiro, não está impedido o processo no Brasil; de outro lado, se o agente foi condenado no estrangeiro e ainda não cumpriu a pena, também pode ser processado no Brasil; e. não ter sido o agente perdoado no estrangeiro ou, por outro motivo, não estar extinta a punibilidade, segundo a lei mais favorável).

    Embora vigente entre nós o princípio da justiça universal, por que o Brasil não tem tido grande protagonismo internacional nesse campo? O que ocorre é que fora do caso do genocídio cometido por brasileiro ou agente domiciliado no Brasil (que é uma situação muito rara), nossa legislação (em relação aos crimes previstos nos tratados internacionais) impõe uma série de condições difíceis de serem concretizadas.

    Qual país vinha ganhando destaque absoluto nessa área? Tratava-se da Espanha. Por quê? A Justiça espanhola, até o advento de uma recente reforma legislativa (15.10.09), abriu processos para apurar crimes ocorridos no Tibet, na Guatemala, em El Salvador, Chile, Israel, Ruanda etc. No ano de 2009 chegou a instaurar seu décimo terceiro processo, desta feita contra os Estados Unidos, para investigar os crimes ocorridos na prisão de Guantánamo. O órgão jurisdicional competente para esses processos, na Espanha, é a Audiência Nacional (que conta com jurisdição universal). Um março histórico dessa espécie de justiça universal foi a prisão do ex-presidente chileno, AUGUSTO PINOCHET, na Inglaterra, prisão essa decretada pelo juiz espanhol (da Audiência Nacional) BALTAZAR GARZÓN. PINOCHET chegou a ser levado ao tribunal chileno, mas a punibilidade acabou sendo extinta em razão da sua morte (em 2006).

    O fundamento ético dessa jurisdição universal reside na imperiosa necessidade de apuração e condenação, em qualquer lugar do planeta, dos bárbaros delitos cometidos com violação dos direitos humanos[1]. Inicialmente nascido para os casos de pirataria e, posteriormente, para os casos de crimes de guerra, o princípio da jurisdição universal vem se consolidando paulatinamente, estando ainda (pode-se dizer) em processo de formação. Ao menos já se consolidou o entendimento de que aqueles que detêm o poder e causam graves violações de direitos humanos não podem ficar impunes, porque essa impunidade afeta profundamente o regime democrático de Estado.

    É justamente o exercício (legítimo) dessa jurisdição universal que vinha destacando a justiça espanhola, visto que ela podia (por lei) julgar inúmeros delitos (genocídio, terrorismo, pirataria e apoderamento de aeronaves, falsificação de moeda etc.), independentemente do local da infração e das qualidades da vítima ou do agente (ou seja: não era preciso que o agente ou a vítima fosse espanhol, não era preciso que o delito afetasse interesses diretos da Espanha etc.).

    A Corte Constitucional da Espanha, no ano de 2009, contrariando decisão do Tribunal Supremo, confirmou a constitucionalidade da lei que previa a jurisdição universal da Audiência Nacional. O fundamento jurídico dessa chamada "justiça universal", portanto, residia, tanto na lei como nos tratados firmados pelo país ibérico.

    Poderia se indagar por que, na Europa, o destaque para a aplicação do princípio da jurisdição universal era da Espanha e por que ele vinha sendo aplicado intensamente neste país? Por várias razões:

    (a) porque o princípio da justiça universal, lá, tinha incidência irrestrita e incondicionada (é puro e absoluto, como disse a Corte Constitucional). Países como França, Alemanha, Bélgica, Itália etc., para a aplicação do princípio da justiça universal, fazem uma série de exigências (tal como acontece no Brasil);

    (b) porque na Espanha é possível o exercício da chamada "ação penal popular", ou seja, qualquer pessoa legitimada pode ingressar com ação penal, em qualquer delito (independentemente da anuência do Ministério Público);

    (c) porque são poucos (muito poucos) os delitos que podem ser julgados pelo TPI (crimes de lesa humanidade, de guerra, genocídio).

    A abertura de mais um processo pela Audiência Nacional, desta vez contra os Estados Unidos, para apurar os delitos cometidos na prisão de Guantánamo, acabou tendo repercussão enorme neste último país. As associações de direitos humanos comemoraram a iniciativa da justiça espanhola, posto que algo semelhante dificilmente ocorrerá dentro dos EUA.

    Mas claro que nem tudo era um mar de rosas: era muito difícil a colheita de provas, o custo desses processos era bastante elevado, a complexidade dessas causas era enorme e ainda existiam as delicadíssimas questões diplomáticas (v.g., China e Israel já ameaçaram romper relações com Espanha caso prosseguissem os processos instaurados contra integrantes dos respectivos governos).

    No último dia 15.10.09 o Parlamento espanhol, sucumbindo às pressões internacionais, aprovou a reforma da Lei Orgânica do Poder Judicial no que diz respeito à jurisdição universal. Importantes restrições foram impostas e, dessa forma, os juízes (espanhóis) já não podem aplicar o princípio da justiça universal de forma ampla, geral e irrestrita. Simon Peres foi o primeiro chefe de Estado (de Israel) a agradecer as mudanças. Todos os processos instaurados antes em relação a fatos que poderiam implicar a Argentina, Chile, Guatemala, Estados Unidos etc. deverão ser extintos, porque a lei nova faz uma série de exigências para que o delito seja perseguido na Espanha. A jurisdição universal, doravante, neste país, só pode ter incidência quando autor do fato esteja no território espanhol ou que existam vítimas de nacionalidade espanhola ou que se constate alguma conexão relevante com a Espanha. De outro lado, a persecução só é possível se inexistir algum outro processo contra o imputado. O princípio da justiça universal na Espanha, como se vê, ganhou os mesmos contornos dos seus países vizinhos (e, agora, já não se distingue tanto do que vale no Brasil).

    [1] Sobre o princípio da jurisdição universal, v. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. International law for humankind: towards a new jus gentium (I): general course on public international law. Recueil des Cours, vol. 316 (2005), p. 432-436.

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