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23 de Abril de 2024
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    Normas, regras e princípios: conceitos e distinções (parte 2)

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br) Professor Doutor em Direito penal pela Universidade de Madri, Mestre em Direito penal pela USP e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG (www.lfg.com.br). Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Os princípios são fontes do direito : é certo que os princípios, normalmente, são mais difusos, vagos e indeterminados (que as regras). De qualquer maneira, não compete ao juiz Hércules (criado por Dworkin), que não existe, delimitar (descobrir) o conteúdo de cada um deles. Essa é uma tarefa da qual devem se encarregar os juízes de carne e osso, que devem se esforçar para descobrir quais regras se vinculam (e quais são contraditórias) com cada um dos princípios (Larenz), procedendo a juízos de ponderação (não de mera subsunção, que é típica das regras). Os princípios exigem mais dos operadores jurídicos, mesmo porque eles jogam um papel muito relevante na atividade argumentativa (demonstração da sua existência, do seu peso, das suas razões éticas ou morais, dos valores que ele congrega etc.), mas isso não os invalida, porque são normas jurídicas tanto quanto as regras. Fazem parte, por isso mesmo, das fontes do direito (cuja teoria, dessa forma, deve ser totalmente revisada).

    Funções dos princípios : três são as destacadas funções desempenhadas pelos princípios (dentro do ordenamento jurídico): (a) fundamentadora das demais normas (das regras), (b) interpretativa e (c) supletiva ou integradora. Por força da função fundamentadora dos princípios, é certo que outras normas jurídicas (regras) neles encontram o seu fundamento de validade (Larenz, García de Enterría etc.). O artigo 261 do CPP (que assegura a necessidade de defensor ao acusado) tem por fundamento os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da igualdade etc.

    Os princípios, ademais, não só orientam a interpretação de todo o ordenamento jurídico (Larenz, Canaris, Guastini etc.), senão que também cumprem o papel de suprir eventual lacuna do sistema (função supletiva ou integradora) , dando-lhe unidade e coerência (Canaris). No momento da decisão o juiz pode valer-se da interpretação extensiva, da aplicação analógica (com certos limites) bem como do suplemento dos princípios gerais de direito (cf., v.g., CPP, art. ). Não havendo regra específica regente do caso, torna-se possível solucioná-lo só com a invocação de um princípio. No âmbito penal, quando se trata de decisão favorável ao réu, não existe nenhuma dúvida sobre isso. Por exemplo: não existe regra específica (no Código Penal brasileiro) sobre os casos insignificantes. Eles vêm sendo solucionados por força (exclusivamente) de um princípio (chamado princípio da insignificância ou da bagatela).

    Princípios constitucionais, infraconstitucionais e internacionais : de todos os princípios (que configuram as diretrizes gerais do ordenamento jurídico), gozam de supremacia os constitucionais e os internacionais . Aliás, quando os princípios ganham o status constitucional ou internacional eles deixam de ser meras diretrizes políticas (ou éticas) para assumiram contornos jurídicos. De qualquer modo, enquanto meras proclamações jurídicas, contam com vigência puramente oficial (formal). Passar a ter vigência social ou real (Eugen Erlich) quando assumidos pela jurisprudência, que outorga aos princípios formais uma vigência real, ou seja, o status de direito vigente e válido, diritto vivente (dos italianos) ou Lebendes Recht (dos alemães).

    Os princípios da ampla defesa (CF, art. , inc. LV), do contraditório (CF, art. , inc. LV), da presunção de inocência (CF, art. , inc. LVII) etc., no instante em que foram assumidos pela jurisprudência, deixaram de ter vigência apenas formal para contarem com o status de direito vigente (ou vivente). Passa-se a mesma coisa com os princípios infraconstitucionais (leia-se: emanados diretamente de regras legais). Por exemplo: princípio do tantum devolutum quantum apellatum , que está contemplado no art. 599 do CPP (devolve-se ao tribunal o conhecimento do quanto foi apelado). Os princípios constitucionais e internacionais contam com maior valor e eficácia e são vinculantes (para o intérprete, para o juiz e para o legislador). Há, de outro lado, princípios que derivam diretamente de regras internacionais . Por exemplo: princípio do duplo grau de jurisdição, que está contemplado na Convenção Americana de Direitos Humanos, da OEA (Pacto de San Jose, art. 8º, II, h). Todo o Direito internacional posto em vigência no Direito interno é fonte do Direito e deve ser considerado para a solução de conflitos. Aliás, tanto quanto se passa com as normas, os princípios internos e os internacionais se dialogam. Sempre deverá ter incidência o que assegura em maior amplitude o exercício de um direito ou de uma garantia (e isso decorre da incidência de um outro princípio: pro homine ).

    Lógica jurídica e lógica formal : os princípios, dotados que são de uma certa superioridade axiológica, são regidos (consequentemente) pelo procedimento da ponderação (axiológica), enquanto as regras pelo da subsunção (procedimento lógico-formal). Isso em nada emperra a teleologia fundamental do intérprete (e do juiz) que é a de buscar entre eles (princípios e regras) o máximo de aproximação (e integração) possível, dando ao ordenamento jurídico coerência e unidade (Larenz, Canaris). Para isso o juiz (Hércules, diria Dworkin), na atualidade, não pode deixar de vivenciar, estimular e exercitar (diuturnamente) o diálogo entre todas as fontes do direito (normas legais, constitucionais e internacionais, jurisprudência interna e externa) (Erik Jayme, Valério Mazzuoli etc.), fazendo as devidas valorações e ponderações de todas essas normas para se descobrir a aplicável em cada caso concreto, que deve orientar a solução mais justa possível. Muitas vezes a norma aplicável se apresenta como fruto de um longo caminho a ser percorrido, caminho esse que se caracteriza pelo diálogo entre regras e princípios contidos nas leis, nos códigos, na constituição, na jurisprudência interna, nos tratados internacionais, sobretudo os de direitos humanos, na jurisprudência internacional e no direito universal (que tem caráter supraconstitucional).

    Tudo isso nos conduz a concluir que, hoje, a lógica jurídica (muito mais complexa) já não se coaduna com a clássica lógica formal. A aplicação judicial do direito já não é fruto de um processo meramente lógico-dedutivo (premissa maior, premissa menor e conclusão, da regra abstrata ao caso concreto), ao contrário, ela é decorrência de uma interação (ponderação, diálogo) permanente entre as regras e os princípios, entre o direito interno e o externo, entre a legalidade e a constitucionalidade, entre a legalidade e a convencionalidade da norma, entre a letra da lei e os valores em jogo em cada caso concreto, entre a forma e a equidade, entre a mera subsunção e a ponderação, entre a interpretação seca da lei e a razoabilidade etc.

    O direito deixou de ser lógico (formal) para se transformar em axiológico (busca do justo mediante a ponderação de valores), deixou de ser somente legalista para interagir (dialogar) com as novas ondas (fontes) do direito (constitucionalismo, internacionalismo e universalismo). Ele se tornou muito mais complexo, é verdade, mas nunca como agora reuniu tantas condições para ser sobejamente justo (em cada caso concreto).

    Os princípios encontram barreiras intransponíveis : os princípios, como normas que revelam as diretrizes do ordenamento jurídico, possuem valor qualificado e funções muito importantes. Apesar de toda essa força, no entanto, em certos âmbitos eles se deparam com barreiras insuperáveis. É o caso do âmbito da tipicidade (restrita, fechada) no Direito penal, da comprovação típica de um fato, da demonstração da esfera do proibido e do castigo etc. Tudo isso, no campo penal, está regido pela legalidade estrita (sendo proibido qualquer tipo de analogia, contra o réu analogia in malam partem ). Essa barreira (da legalidade estrita) não pode ser transposta (ultrapassada) por nenhum princípio, por mais relevantes que sejam as suas implicações (ou motivações) axiológicas.

    A cola eletrônica, por exemplo, é um fato atípico (STF, Inq. 1145-PB, rel. Min. Gilmar Mendes; STJ, HC 39.592-PI, rel. Min. Haroldo Rodrigues). Por mais que moralmente seja reprovável, enquanto não houver tipicidade legal (formal), nada se pode fazer contra o agente (do ponto de vista do direito penal). O art. 306 do CTB exige um condutor de veículo com 0 ,6 decigramas de álcool por litro de sangue. Sem a comprovação desse teor alcoólico não há que se falar em crime (que é regido pela legalidade estrita). Por força do princípio da proibição da proteção deficiente, quando a lei protege um bem jurídico de forma desarrazoada (para menos) cabe criticar a lei (e, às vezes, até corrigi-la). Mas contra o réu (no âmbito penal) nada pode ser feito enquanto a lei não for alterada. Em síntese: os princípios são importantes, são portadores de diretrizes do ordenamento, possuem força normativa incontestável, são, dir-se-ia, instrumentos quase mágicos, mas não podem tudo. Existem barreiras que são insuperáveis (e que não podem ser atropeladas pelos princípios).

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