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25 de Abril de 2024
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    Violência de gênero e exigência de representação da vítima: equívoco do STJ (parte 2)

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br) Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). ALICE BIANCHINI Doutora em Direito Penal pela PUC-SP. Mestre em Direito pela UFSC. Professora de Direito Penal do Curso de Mestrado da Unisul. Professora convidada nos cursos de pós-graduação da UEL, da PUC-RS, da UFBA, do UniCuritiba e do Podivm (BA). Presidente do Instituto Panamericano de Política Criminal. Coordenadora dos Cursos de Especialização TeleVirtuais da Universidade Anhanguera-Uniderp, em convênio com a Rede LFG.

    Faltou ao STJ uma visão de conjunto. O grave problema de quem só vê algumas árvores é que (ele) não consegue enxergar a floresta. Só no dia em que a mulher já não mais estiver inserida nesse contexto relacional (e cultural) hierarquizado é que se poderá falar em manifestação livre da sua vontade. Por ora, essa não é a realidade (nem o padrão) cultural do nosso país. O STJ, ao concluir (majoritariamente) pela exigência da representação da vítima não reconheceu a realidade cultural brasileira nem percebeu a imperiosa necessidade (na atualidade) da conjugação de todas as fontes do direito. Ignorou-se o que Miguel Reale chamava de referenciabilidade social da lei.

    Toda lei tem que ser aplicada a uma determinada sociedade (num determinado momento histórico), que conta com suas escalas de valores. Quando são constatadas incongruências valorativas (esse é o caso do machismo gerador da violência de gênero), em matéria de proteção dos direitos humanos, cabe ao juiz abrir os olhos para essa realidade. Foi precisamente o que o STJ (Terceira Seção, por sua maioria) não fez.

    Recordando os objetivos da lei Maria da Penha: a Lei 11.340/2006 (lei Maria da Penha) criou mecanismos para coibir a violência doméstica, familiar ou no âmbito de relacionamentos íntimos (relação de afeto). Assinalou como sujeito passivo dessa violência a mulher. A preocupação central da lei, como se vê, não foi disciplinar (toda) a violência doméstica (fenômeno muito grave no nosso país), que tem como sujeito passivo qualquer pessoa. Buscou-se especificamente a tutela da mulher, não por razão de sexo, sim, em virtude do gênero. É isso que muitos ainda não compreenderam.

    Violência de gênero (conceito) : sexualmente falando a diferença entre o homem e a mulher é a seguinte: o homem faz a mulher engravidar; a mulher menstrua, desenvolve a gestação e amamenta. Fisicamente falando essa é a diferença. Fora disso, qualquer outro tipo de distinção é cultural (e é aqui que reside a violência de gênero: que é eminentemente cultural). Cada sociedade (e cada época) forma (cria) uma identidade (comportamental) para a mulher e para o homem. O modo como a sociedade vê o papel de cada um, com total independência frente ao sexo (ou seja: frente ao nosso substrato biológico), é o que define o gênero. Todas as diferenças não decorrentes da biologia (menstruação, gestação e amamentação) e impostas pelas regras culturais da sociedade são diferenças de gênero.

    O homem tem direito de bater na sua mulher? : pesquisa da ONG Promundo, com homens jovens da Maré, no Rio, mostrou que 35% acham justificável bater em mulher quando ela se veste ou se comporta de maneira provocante (O Globo de 30.03.09, p. 10). Mais: 10% acham que é legítimo o uso de violência psicológica contra a mulher e 15% admitiram que bateram em sua mulher nos últimos seis meses. Essa crença popular (machista) de que o homem pode bater na (sua) mulher constitui um exemplo que bem expressa a violência de gênero (que é, repita-se, cultural).

    Números que comprovam a violência machista : a cada dezoito segundos uma mulher é agredida no planeta (dados da ONU, segundo Xavier Torres, no prefácio do livro Maltrato, um permiso milenario , de Ana Kipen e Mônica Caterberg, Barcelona: Internón Oxfam, 2006, p. 23). No Brasil temos um espancamento contra a mulher em cada quinze segundos (pesquisa levantada por Alice Bianchini junto à Fundaçã Perseu Abramo). Isso explica que a preocupação número um das mulheres no Brasil continue sendo a violência doméstica (56%, conforme Pesquisa feita com duas mil pessoas em todas as regiões do país, entre os dias 13 e 17 de fevereiro de 2009 Ibope e Instituto Avon).

    Justificação da constitucionalidade da lei : a diferença de tratamento (criada pela cultura sociedade marcadamente machista), que está na base da violência do homem contra a mulher, justifica de forma irrefutável a constitucionalidade de todas as medidas protetivas previstas na lei Maria da Penha, assim como a não exigência de representação da vítima, no caso de lesão corporal leve (praticada no contexto da violência de gênero).

    Note-se que, na parte criminal (sancionatória criminal), o tratamento é igualitário (ou seja: a pena para o delito de homicídio ou de lesão corporal é idêntica, não importa quem foi o autor e a vítima). O que a lei trouxe de novidade foi uma decisiva carga protetiva pró mulher, que é a que mais sofre nesse embate familiar e doméstico. A lei partiu dessa premissa: há desigualdade (fática) entre o homem e a mulher (daí a necessidade de proteção). Isso feriria a isonomia? Não. O princípio da igualdade é não somente formal, senão sobretudo material. Cabe à lei tratar os iguais igualmente e os desiguais desigualmente. Em matéria de violência de gênero a mulher é desigual em relação ao homem (ela é vista de forma inferiorizada, hierarquizada). Logo, deve ser tratada de maneira diferente. Impõe-se, destarte, pela via legal, dar-lhe o necessário up grade (para que haja igualdade).

    Não existe uma discriminação odiosa, não justificada, em favor da mulher. Ao contrário, é com as medidas protetivas da lei que se busca o equilíbro. A mulher, no contexto cultural em que vivemos, necessita dessa proteção (não, obviamente, por se tratar da machista visão de sexo frágil), porque ela é a que mais sofre (porque ela é a que, culturalmente, é vista numa relação hierarquizada, inferiorizada). Exigir que essa mulher (culturalmente) inferiorizada manifeste sua vontade livre (livre?) no sentido de processar seu agressor constitui rematado disparate.

    Bem jurídico supraindividual : desde logo porque não se pode exigir de quem não é livre um ato que pressupõe liberdade (o STJ - Terceira Seção - parece não ter compreendido bem o que significa violência de gênero). Não tendo entendido o conceito (violência de gênero) tampouco conseguiu vislumbrar o bem jurídico protegido, que é supraindividual (a lei procurou regrar imediatamente não a integridade física da mulher, sim a eliminação da sua submissão; o bem jurídico protegido na violência de gênero diz respeito à eliminação de uma desigualdade que é patente em sociedades com padrões sócio-culturais machistas e discriminatórios).

    Cuidando-se de um bem jurídico supraindividual, não há que se falar em representação da vítima (ou de uma vítima, que não tem legitimidade para falar em nome do todo). Aliás, precisamente pela importância desse bem jurídico é que o 9º do art. 129 do CP criou uma forma qualificada de lesão, com pena agravada (Nucci). A representação da vítima é válida para a lesão corporal leve do caput do art. 129 do CP, não para a forma qualificada ou, pelo menos, para a forma qualificada pela violência de gênero.

    O que entram em jogo (na violência machista de gênero) não é somente a violência em si , mas, igualmente, todos os mecanismos legitimadores e propiciadores de sua perpetuação. Neste sentido, concluíram Alice Bianchini e Valerio Mazzuoli, a Lei Maria da Penha não só não carrega a pecha da inconstitucionalidade, como, em verdade, concretiza o mandamento constitucional que determina a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, 8.º, CF). Em outras palavras, a Lei Maria da Penha preenche o comando constitucional que atribui ao Estado o dever de coibir a violência no contexto familiar, daí advindo sua plena e irrestrita constitucionalidade. Pode-se então dizer que o art. 226, 8.º, da CF/1988, é norma-suporte que legitima a intervenção do legislador ordinário no sentido de erradicar toda e qualquer violência no âmbito das relações domésticas (em geral) e a envolver a figura da mulher (em especial).

    A referida lei, de outro lado, eliminou qualquer possibilidade de consenso (nenhum dos institutos despenalizadores da lei dos juizados é aplicável na violência de gênero)[ 2 ]. A representação da vítima contemplada no art. 88 da Lei 9.099/1995 visou a facilitar a reparação dos danos em favor da vítima. Considerando-se que essa reparação não faz parte do escopo da lei Maria da Penha, conclui-se que não há espaço para a tese que admite a representação dessa vítima (no contexto da violência de gênero).

    Notas de Rodapé:

    [2] ALei Maria da Penhaa nao só afastou a aplicação do institutos despenalizadores da lei dos juizados como também vetou, em seu art177777, a aplicação de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/violencia-de-genero-e-exigencia-de-representacao-da-vitima-equivoco-do-stj-parte-2/2111766

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