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19 de Abril de 2024

ARTIGO DO DIA: Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes?

há 14 anos

LUIZ FLÁVIO GOMES

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br - Pesquisadora : Áurea Maria Ferraz de Sousa.

Como citar este artigo : GOMES, Luiz Flávio. SOUSA, Áurea Maria Ferraz de. Estupro e atentado violento ao pudor: crime único ou concurso de crimes? Disponível em http:// www.lfg.com.br - 01 de julho de 2010.

O sujeito, no mesmo contexto fático , constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse fato (esse contexto fático único, contra a mesma vítima) constitui crime único (CP, art. 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?

Antes do advento da Lei 12.015/2009, os fatos narrados estavam descritos em dois tipos penais: art. 213 (conjunção carnal) e art. 214 do CP (coito anal, ou seja, ato libidinoso diverso da conjunção carnal). A jurisprudência majoritária entendia haver nesse caso concurso material de crimes (JSTF 301/461), isto é, dois crimes autônomos e independentes , com penas somadas. Não se tratava de conduta única (logo, impossível era reconhecer o concurso formal ). Mais: considerando-se que os dois delitos achavam-se em tipos penais distintos, impossível era (também) reconhecer o crime continuado . Assim era antes da Lei 12.015/2009.

O STJ , nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP , Quinta Turma, dia 22.06.10, seguiu esse antigo entendimento: não se trata de crime único . Haveria, para essa Turma (votos condutores de Felix Fischer e Laurita Vaz), uma pluralidade de crimes (concurso material) . E mais: considerando-se que se trata de penetração sexual distinta, nem sequer cabível seria o crime continuado .

Fundamento dessa posição: o novo crime de estupro é um tipo misto cumulativo , ou seja, as condutas de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso, embora reunidas em um mesmo artigo de lei, com uma só cominação de pena, serão punidas individualmente se o agente praticar ambas, somando-se as penas [depende, nem sempre é assim] . O colegiado entendeu também que, havendo condutas com modo de execução distinto, não se pode reconhecer a continuidade entre os delitos (Informações do stj.jus.br ) [se os crimes são da mesma espécie, não há como negar o crime continuado, como veremos] .

O decidido pelo STJ (em 22.06.10) diverge do entendimento já aceito pelo STF, que sinalizou a aprovação da tese do crime único, nestes termos:

Lei 12.015/2009: Estupro e Atentado Violento ao Pudor .

A Turma do STF deferiu habeas corpus em que condenado pelos delitos previstos nos artigos 213 e 214, na forma do art. 69, todos do CP, pleiteava o reconhecimento da continuidade delitiva entre os crimes de estupro e atentado violento ao pudor. Observou-se, inicialmente, que, com o advento da Lei 12.015/2009, que promovera alterações no Título VI do CP, o debate adquirira nova relevância, na medida em que ocorrera a unificação dos antigos artigos 213 e 214 em um tipo único [CP, Art. 213: Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009).]. Nesse diapasão, por reputar constituir a Lei 12.015/2009 norma penal mais benéfica, assentou-se que se deveria aplicá-la retroativamente ao caso, nos termos do art. , XL, da CF, e do art. , parágrafo único, do CP. HC 86110/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 2.3.2010. (HC-86110) . (Ver informativo Nº 577).

O decidido pelo STJ (nos HC s 104.724-MS e 78.667-SP ) diverge também do entendimento seguido pela Sexta Turma do mesmo Superior Tribunal de Justiça:

Sexta Tur ma

ESTUPRO. ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. LEI N. 12.015/2009.

Trata-se de habeas corpus no qual se pleiteia, em suma, o reconhecimento de crime continuado entre as condutas de estupro e atentado violento ao pudor, com o consequente redimensionamento das penas. Registrou-se, inicialmente, que, antes das inovações trazidas pela Lei n. 12.015/2009, havia fértil discussão acerca da possibilidade de reconhecer a existência de crime continuado entre os delitos de estupro e atentado violento ao pudor, quando o ato libidinoso constituísse preparação à prática do delito de estupro, por caracterizar o chamado prelúdio do coito ( praeludia coiti ), ou de determinar se tal situação configuraria concurso material sob o fundamento de que seriam crimes do mesmo gênero, mas não da mesma espécie. A Turma concedeu a ordem ao fundamento de que, com a inovação do Código Penal introduzida pela Lei n. 12.015/2009 no título referente aos hoje denominados crimes contra a dignidade sexual, especificamente em relação à redação conferida ao art. 213 do referido diploma legal, tal discussão perdeu o sentido. Assim, diante dessa constatação, a Turma assentou que, caso o agente pratique estupro e atentado violento ao pudor no mesmo contexto e contra a mesma vítima, esse fato constitui um crime único, em virtude de que a figura do atentado violento ao pudor não mais constitui um tipo penal autônomo, ao revés, a prática de outro ato libidinoso diverso da conjunção carnal também constitui estupro. Observou-se que houve ampliação do sujeito passivo do mencionado crime, haja vista que a redação anterior do dispositivo legal aludia expressamente a mulher e, atualmente, com a redação dada pela referida lei, fala-se em alguém. Ressaltou-se ainda que, não obstante o fato de a Lei n. 12.015/2009 ter propiciado, em alguns pontos, o recrudescimento de penas e criação de novos tipos penais, o fato é que, com relação a ponto específico relativo ao art. 213 do CP, está-se diante de norma penal mais benéfica ( novatio legis in mellius). Assim, sua aplicação, em consonância com o princípio constitucional da retroatividade da lei penal mais favorável, há de alcançar os delitos cometidos antes da Lei n. 12.015/2009, e, via de consequência, o apenamento referente ao atentado violento ao pudor não há de subsistir. Todavia, registrou-se também que a prática de outro ato libidinoso não restará impune, mesmo que praticado nas mesmas circunstâncias e contra a mesma pessoa, uma vez que caberá ao julgador distinguir, quando da análise das circunstâncias judiciais previstas no art. 59 do CP para fixação da pena-base, uma situação da outra, punindo mais severamente aquele que pratique mais de uma ação integrante do tipo, pois haverá maior reprovabilidade da conduta (juízo da culpabilidade) quando o agente constranger a vítima à conjugação carnal e, também, ao coito anal ou qualquer outro ato reputado libidinoso. Por fim, determinou-se que a nova dosimetria da pena há de ser feita pelo juiz da execução penal, visto que houve o trânsito em julgado da condenação, a teor do que dispõe o art. 66 da Lei n. 7.210/1984. HC 144.870-DF, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 9/2/2010 . (Ver Informativo 422).

Voltemos ao princípio: crime único ou concurso de crimes?

No nosso livro ( Comentários à reforma criminal de 2009 , L.F. Gomes, R. Sanches e V. Mazzuoli, RT) defendemos a tese do crime único (quando se trata de contexto fático único, contra a mesma vítima, mesmo bem jurídico) .

Para nós, o tipo penal do art. 213, depois do advento da Lei 12.015/2009, passou a ser de conduta múltipla ou de conteúdo variado: praticando o agente mais de um núcleo (mais de uma ação), dentro do mesmo contexto fático, não desnatura a unidade do crime (dinâmica que, no entanto, não pode passar imune na oportunidade da análise do art. 59 do CP). O crime de ação múltipla (ou de conteúdo variado) é regido pelo princípio da alternatividade, ou seja, várias condutas no mesmo contexto fático significam crime único.

Esse nosso entendimento, conforme já sublinhamos, foi secundado pela Sexta Turma do STJ assim como pela Segunda Turma do STF. A divergência, agora, foi aberta com a decisão da Quinta Turma ( HCs 104.724-MS e 78.667-SP ), sob o fundamento de que se trata (art. 213, novo) de tipo misto cumulativo .

Que se entende por tipo misto cumulativo? Qual é sua diferença com o tipo penal misto alternativo?

Abrão Amisy Neto, Promotor de Justiça do 1º Tribunal do Júri de Goiânia (GO), sobre o tema escreveu o seguinte:

Tipo penal "misto alternativo" ou "misto cumulativo"? Outra divergência que ocorrerá (...) relaciona-se com a distinção entre "tipo penal misto alternativo" e "tipo penal misto cumulativo". Na primeira hipótese, ainda que incorra o agente em mais de uma conduta responderá por uma só sanção: o agente que induz e depois instiga a vítima a suicidar-se incorrerá em única sanção do art. 122 CP (o art. 33 da Lei n. 11.343/2006 - tráfico de substâncias entorpecentes - é outro exemplo). Para os que assim se posicionarem, aquele que constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal e depois pratica ato libidinoso diverso que não seja simples prelúdio da cópula (relação oral ou anal, conforme jurisprudência), responderá por crime único de estupro, devendo o juiz analisar tais circunstâncias na fixação da pena (deve ser a corrente majoritária na doutrina). No segundo caso, tipo penal "misto cumulativo", quando o mesmo tipo prevê figuras delitivas distintas, sem fungibilidade entre elas, caso o agente incorra em mais de uma deverá ser aplicada a regra do concurso de crimes (por exemplo: art. 242 CP). Para os que assim se posicionarem, o agente que constrange a vítima, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal e depois pratica ato libidinoso diverso que não seja simples prelúdio da cópula (relação oral ou anal, por exemplo), responderá em concurso material ou em continuidade delitiva.

Argumentos favoráveis ao "misto alternativo" : existência de núcleo do tipo comum ("constranger"); fusão dos tipos penais anteriores em um único tipo (art. 213 + art. 214 = novo art. 213 CP); os tipos "mistos cumulativos" possuem as suas distintas figuras separadas por ";" ou e, enquanto que a utilização de "," ou "ou" são típicas de misto alternativo.

Argumentos favoráveis ao "misto cumulativo" : a alteração legislativa buscou reforçar a proteção do bem jurídico e não enfraquecê-lo; caso o legislador pretendesse criar um tipo penal de ação única ou misto alternativo não distinguiria a "conjunção carnal" de "outros atos libidinosos", pois é notório que a primeira se insere no conceito segundo, mais abrangente. Portanto, bastaria que tivesse redigido o tipo penal da seguinte maneira: "Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso". Visível, portanto, que o legislador, ao continuar distinguindo a conjunção carnal dos "outros atos libidinosos", não pretendeu impor única sanção em caso de condutas distintas.

Vamos aos conceitos (de acordo com nosso ponto de vista): tipo simples: é o que contém um único verbo (um único núcleo, uma única ação ou omissão, ou seja, uma única conduta). Exemplo: art. 121 do CP, matar alguém. Tipo composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou de conteúdo variado: é o que contém vários verbos (logo, várias condutas). Exemplo: art. 122 do CP: induzir ou instigar ou auxiliar o suicídio.

O tipo penal do art. 213, para nós, é um tipo penal composto ou misto ou de conteúdo múltiplo ou de conteúdo variado porque descreve várias ações: constranger a ter conjunção carnal, constranger a praticar outro ato libidinoso, constranger a permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.

Tipo penal misto alternativo ou cumulativo?

Para Régis Prado ( Curso de direito penal brasileiro , RT) tipo misto alternativo ocorre quando há uma fungibilidade (conteúdo variável) entre as condutas, sendo indiferente que se realizem uma ou mais, pois a unidade delitiva permanece inalterada (art. 175: fraude no comércio, 233 -ato obsceno- etc.); no tipo mismo cumulativo não há fungibilidade entre as condutas, o que implica, em caso de se realizar mais de uma, a aplicação da regra cumulativa concurso material. Exemplos: arts. 135 (omissão de socorro), 180 (receptação), 242, 244, 326 etc.

Régis Prado, como se vê, concentra a essência dos conceitos na fungibilidade (ou não) das condutas. Segue, destarte, uma linha mais formalista. Para Diego-Manuel Luzón Peña ( Curso de Derecho penal , Universitas) o fator distintivo é outro: passa por saber se a segunda (ou outra) conduta agrega ou não maior desvalor ao fato. No caso do delito de tráfico de drogas (art. 33 da Lei 11.343/2006), se o sujeito importa a droga e a mantém em depósito e depois transporta, em nada se altera o injusto (não existe maior desvalor da conduta ou do resultado). Cuida-se de um tipo penal misto alternativo. Quando a segunda conduta implica em maior desvalor do fato, o tipo penal seria misto cumulativo.

O critério dado por Luzón Peña nos parece válido , mas incompleto , porque para além do maior desvalor do fato há outros dados muito relevantes: saber se se trata do mesmo contexto fático ou não, da mesma vítima ou não, do mesmo bem jurídico ou não.

Completando a sua classificação teríamos que fazer a seguinte distinção:

(a) tipo misto cumulativo unitário (ou seja: maior desvalor do fato, em razão da prática de várias condutas) + contexto fático único + vítima única + mesmo bem jurídico = crime único punido mais severamente. Aqui teríamos um tipo misto cumulativo unitário (porque se trata de crime único, punido mais gravemente, em razão do maior desvalor do fato);

(b) tipo misto cumulativo concursal (ou seja: maior desvalor do fato, em razão da prática de várias condutas) + contextos fáticos diferentes ou vítimas diferentes ou bens jurídicos diferentes = crimes diferentes, pluralidade de crimes. Aqui teríamos um tipo misto cumulativo concursal (porque conduz a um concurso de crimes).

No caso do art. 213 do CP, se o sujeito pratica coito vaginal e coito anal, contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, isso significa maior desvalor do fato ? Para nós a resposta é positiva (claro que sim). Então o art. 213 retrataria um tipo penal misto cumulativo? Sim.

Unitário ou concursal? Unitário . Por quê? Porque se trata de contexto fático único contra a mesma vítima (sendo o mesmo bem jurídico). Contexto fático único, mesma vítima e mesmo bem jurídico, embora ofendido de diversas formas, jamais pode configurar uma pluralidade de delitos. Cuida-se de crime único. Mas a pluralidade de condutas e de ofensas valeriam para algo? Sim, para a dosagem da pena (nos termos do art. 59 do CP). O estupro com coito vaginal e anal (em razão do maior desvalor do fato) evidentemente tem que ser punido de forma mais grave que o estupro com coito vaginal (tão-somente).

O concurso de crimes pressupõe pluralidade de crimes e a pluralidade de crimes pressupõe pluralidade de fatos, não só de ações (ou omissões). O concurso de crimes, por força do princípio da razoabilidade, já não pode ser fundado única e exclusivamente na pluralidade de ações (tal como defendia a clássica doutrina italiana: Bettiol etc.). A ação é uma parte do fato. O fato é composto de uma ação, de um autor, de uma vítima, de um contexto fático, de um resultado jurídico etc. O concurso de crimes, no entanto, gira em torno do todo, não da parte (da ação) . O todo (o fato completo) é o que importa (para o efeito de haver ou não concurso de crimes). A valoração jurídica tem que recair sobre a totalidade do fato , não sobre uma parte dele .

A Quinta Turma do STJ, nos HCs 104.724-MS e 78.667-SP , acertou (de acordo com a classificação dada por Luzón Peña: maior desvalor do fato quando várias condutas são realizadas) ao admitir a existência (no art. 213 do CP) de um tipo penal misto cumulativo . Equivocou-se , no entanto, ao concluir pelo concurso de crimes (concurso material de crimes). Equivocou-se mais ainda ao refutar o crime continuado (com base na teoria da penetração sexual).

Referida Quinta Turma levou em conta o maior desvalor do fato (quando várias condutas são praticadas: coito vaginal e coito anal), mas se esqueceu completamente dos outros critérios: mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico .

O art. 213, diante de tudo quanto foi exposto, retrata um tipo penal misto cumulativo unitário , quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico . Retrataria, distintamente, um tipo penal misto cumulativo concursal , quando não se trata do mesmo contexto fático ou da mesma vítima ou do mesmo bem jurídico.

Voltando à pergunta inicial: o sujeito, no mesmo contexto fático , constrange a mesma vítima (uma mulher), mediante violência ou grave ameaça, e mantém com ela tanto conjunção carnal como coito anal. Esse fato (esse contexto fático único, contra a mesma vítima) constitui crime único (CP, art. 213, com a redação dada pela Lei 12.015/2009) ou uma pluralidade de crimes (concurso de crimes)?

Resposta: crime único , mas que deve ser punido mais severamente (porque, em razão da pluralidade de ações, maior é o desvalor do fato). A pena, como já dizia Beccaria (1764), em razão do princípio da proporcionalidade, tem que guardar correspondência com o nível de graduação (reprovação) do fato. Quanto mais reprovável o fato mais sanção se justifica.

O entendimento do STJ, então, é equivocado ? De acordo com nosso ponto de vista sim. O fato de afirmar que o art. 213 retrata um tipo penal misto cumulativo não significa, automaticamente, que se deva reconhecer um concurso de crimes. O maior desvalor do fato (decorrente da realização de várias condutas) pode significar fato unitário punido mais gravemente ou um concurso de crimes .

Quais são os fatores distintivos: mesmo contexto fático ou não, mesma vítima ou não, mesmo bem jurídico ou não.

Um erro quase sempre (desgraçadamente) vem seguido de outro : o STJ também errou ao construir a tese da não admissibilidade do crime continuado fundada na forma da penetração (vaginal ou anal). Na eventualidade de que a situação concreta conduza à existência de um concurso de crimes (vários crimes de estupro), como são crimes de mesma espécie (previstos no mesmo tipo penal), não há como refutar o crime continuado (ainda mais quando se invoca a teoria da forma de penetração sexual). Se o sujeito estuprar uma primeira vítima mediante a penetração vaginal e uma outra mediante a penetração anal, claro que estamos diante de um crime continuado (se presentes todos os seus requisitos). A forma de penetração sexual não pode servir de base para a rejeição do crime continuado (porque muito mais relevantes são os outros componentes do fato: a conduta, os sujeitos, o tempo, o lugar etc.).

O concurso de crimes pressupõe uma pluralidade de crimes? Não há dúvida. A pluralidade de ações (várias ações: coito vaginal e coito anal, v.g.) conduz necessariamente ao concurso de crimes? Não necessariamente. Por quê? Porque o relevante é o todo (o fato), não a parte (unicamente a ação). O concurso de crimes não pode ter como referência a parcialidade , sim, a totalidade . Não é a estrutura da ação que define a existência (ou não) do concurso de crimes. Sim, a estrutura do fato.

Conclusão : quem pratica coito vaginal e coito anal, ambos descritos no mesmo tipo penal (art. 213 do CP), no mesmo contexto fático, contra a mesma vítima, afetando o mesmo bem jurídico, pratica crime único (não uma pluralidade de crimes) . Quem desfere vários golpes contra a mesma vítima, no mesmo contexto fático, comete um único crime de lesão corporal. A repetição dos atos será levada em consideração no momento da pena. Errou a Quinta Turma do STJ, com a devida vênia. Acertaram a Sexta Turma e o STF. A teoria do tipo misto cumulativo é muito mais complexa do que parece. Ela não serve de guarda-chuva para soluções formalistas ou inferências rápidas (e desproporcionais).

O legislador da Lei 12.015/2009 atirou no que viu e acertou no que não viu. Ele queria punir mais gravemente o estupro e o atentado violento ao pudor. Imaginou que fundindo os dois tipos penais (arts. 213 e 214 do CP) isso seria alcançado. Errou no seu propósito. Mas acertou em fundir os dois tipos penais.

Cabe agora aos intérpretes e aplicadores da lei distinguirem o joio do trigo, ou seja, as situações concretas. Quando se trata do mesmo contexto fático, mesma vítima e mesmo bem jurídico, ainda que o sujeito realize várias ações, não há como deixar de reconhecer crime único (punido mais severamente) . Considerando-se as várias ações (maior desvalor do fato), a ele (juiz) compete fazer a adequação da pena, atendendo à seguinte equação: maior desvalor do fato = maior pena.

Não nos restam dúvidas da irrefutável desobediência à legalidade penal no posicionamento adotado pela Quinta Turma. A força vinculante da legalidade se revela no artigo 5º, XXXIX, da Lei Maior, ou seja, trata-se de princípio constitucional que impõe sua observância por todos os poderes públicos. Assim sendo, com relevância ímpar destacamos a obediência à legalidade criminal e penal pelo Judiciário, pois embora consideradas as possíveis valorações complementares do Juiz, ele não pode arbitrariamente criar, como fez a Quinta Turma no presente caso, excessos punitivistas, sem se aprofundar em todas as peculiaridades do caso e da ciência jurídica.

Desde a Lei 12.015/2009, pouco importa a prática sexual a que se submete a vítima: há um crime grave e hediondo, mas as especificidades do caso deverão ser analisadas na dosimetria da pena, considerando-se os parâmetros ditados pelo artigo 59 do Código Penal. Não cabe ao Judiciário fazer interpretações populistas manipulativas como a de dizer que o artigo 213, do CP, consubstancia-se em tipo misto cumulativo, sem adentrar em todos os seus desdobramentos técnicos e científicos.

Assistam nossos comentários em "Jurisprudência Comentada", nosso "Direito em Pílulas" na TVLFG e no LFG News .

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Sensacional o artigo, uma verdadeira aula..... continuar lendo