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    Embriaguez ao volante (Lei 11.705/2008): exigência de perigo concreto indeterminado - Luiz Flávio Gomes

    há 16 anos

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante (Lei 11.705 /2008): exigência de perigo concreto indeterminado. Disponível em http://www.lfg.com.br 02 julho. 2008.

    Disciplinando a infração administrativa de dirigir embriagado o novo art. 165 do CTB diz o seguinte: "Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência". O art. 306 do mesmo Código, ao cuidar do delito de embriaguez ao volante, não fez expressa referência ao "estar sob a influência" de álcool.

    Apesar dessa lacuna, não há como deixar de reconhecer que ambas as infrações exigem (necessariamente) o "estar sob a influência" (seria um absurdo afirmar que a infração administrativa - que é o menos - faz tal exigência enquanto o delito - que é o mais - se contentaria com o simples perigo abstrato).

    Se a infração administrativa, que é o menos, exige o "estar sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância", com muito mais razão essa premissa (essa elementar típica) tem que ser admitida para a infração penal (que é o mais). O "estar sob a influência", conseqüentemente, é uma elementar típica implícita do art. 306.

    Esse entendimento, aliás, tem apoio em vários outros dispositivos legais da mesma Lei 11.705 /2008, a começar pelo seu art. , que diz: "Esta lei (...) obriga estampar (nos estabelecimentos que vendem ou oferecem bebida alcoólica) aviso de que constitui crime dirigir sob a influência de álcool" . No art. 291 , § 1º , uma das hipóteses que evita a incidência da lei dos juizados criminais no delito de lesão corporal culposa consiste precisamente em dirigir sob a influência de álcool ou qualquer outra substância psicoativa que determine dependência (art. 291, § 1º, I). Se persistisse ainda alguma dúvida, bastaria ler o art. da nova lei, que agregou o art. 4º-A à Lei 9.294 /1996, com a seguinte redação: "Na parte interna dos locais em que se vende bebida alcoólica, deverá ser afixado advertência escrita de forma legível e ostensiva de que é crime dirigir s ob a influência de álcool , punível com detenção."

    Em síntese: o estar sob a influência faz parte tanto da infração administrativa (art. 165) como da infração penal (art. 306). Interpretar a primeira parte do novo art. 306 secamente (literalmente), ou seja, como infração de perigo abstrato (em outras palavras: para a ocorrência do delito bastaria conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 - seis - decigramas) seria um absurdo por outro motivo: estaríamos diante de uma presunção iuris et de iure, de uma afirmação categórica generalista, que iria ter incidência automática em todos os casos (ainda que o motorista estivesse dirigindo corretamente). Note-se que a presunção de perigo abstrato não admite prova em sentido contrário. Seria uma presunção absoluta, típica dos regimes autoritários ou totalitários.

    Essa conclusão, de outro lado, além de autoritária, revelaria uma ignorância incomensurável nesse tema da influência do álcool nas pessoas. Isso é muito variável, conforme a altura e o peso da pessoa, o sexo etc. (cf . Barquín Sanz, J, e Luna del Castillo, J. de Dios, Seguridad em la conduccion trás consumo moderado de bebidas alcohólicas, em Delincuencia em matéria de tráfico y seguridad vial, coordenação de Morillas Cueva, Madrid: Dykinson, 2007, p. 439 e ss.). Nem sempre o dirigir com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas) significa conduzir anormalmente. Em algumas pessoas seis decigramas de álcool (que equivale em geral a uma lata de cerveja ou a dois chopes) não produzem nenhum efeito perturbador em sua conduta. Não basta, assim, constatar a embriaguez (seis ou mais decigramas de álcool por litro de sangue). Mais do que isso: no art. 306 é sempre fundamental verificar como o sujeito dirigia (normal ou anormalmente).

    A criminalização da direção embriagada é uma medida de política criminal muito acertada, porque visa a proteger bens jurídicos importantes (vida, integridade física etc.). Mas é preciso saber com quais possibilidades conta o legislador para fazer isso de forma constitucional (e legítima). O legislador ordinário tem limites. Nem tudo que ele põe em vigência vale.

    Uma das formas de se proteger esses bens jurídicos consiste em exigir como resultado da conduta um perigo concreto para pessoa concreta - perigo concreto determinado (isso era o que ocorria com a anterior redação do art. 306). Uma outra forma antecipada, ainda válida, consiste em punir penalmente o sujeito que coloca em risco a segurança viária (isso significa, na dogmática, lesão ao bem jurídico coletivo e, ao mesmo tempo, perigo concreto indeterminado para os bens jurídicos pessoais). É o meio termo mais adequado. A forma extremada, que constitucionalmente está vedada ao legislador, consiste em valer-se do perigo abstrato (que é uma posição absolutista, autoritária). In medio est virtus.

    Se no Estado constitucional e democrático de Direito não comungamos com o autoritarismo, só resta concluir que a melhor (e mais acertada) interpretação ao atual art. 306 consiste em admitir que o "estar sob a influência de álcool" é um requisito típico implícito impreterível. De outro lado, o "estar sob a influência" no art. 306 exige, necessariamente, direção anormal (porque só assim há ofensa ao bem jurídico segurança viária).

    O perigo abstrato é válido somente no campo administrativo. É inadmissível no âmbito do Direito penal (porque viola o princípio da ofensividade - cf . GOMES, L.F. e GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Direito penal-PG, v. 1, São Paulo: RT, 2007, p. 464 e ss.). A ofensividade autoriza a antecipação da tutela penal para campos prévios (Vorfeldkriminalisierung), ou seja, permite o delito de perigo, mas sempre deve ser o concreto (não o abstrato). Nisso é que reside uma das diferenças entre a infração administrativa e a penal. Eventual interpretação literal da primeira parte do art. 306 retrataria exemplo de administrativização do Direito penal. Confundiria Direito administrativo com Direito penal.

    Contentar-se, no âmbito penal, com o simples perigo abstrato significa dar curso ao abominável Direito penal do inimigo, que pune o agente sem o devido respeito às garantias mínimas do Direito penal (estando, dentre elas, o princípio a ofensividade). O Direito penal nazista fez muito uso dessa técnica legislativa consistente na infração de perigo abstrato (ou seja: mera desobediência à norma, sem nenhuma preocupação com a ofensa ao bem jurídico). Não podemos repetir o que historicamente se tem como abominável. Não podemos conceber como válida uma interpretação nazista do Direito penal.

    Conclusão: ambos os dispositivos (arts. 165 e 306) exigem o "estar sob a influência" de álcool ou outra substância (de acordo com nossa interpretação fundada na razoabilidade). O art. 306, também em sua primeira parte, destarte, não é um delito de perigo abstrato. Exige mais que uma condição (o estar bêbado), mais que isso, a comprovação de uma direção anormal (zig-zag, v.g.), que espelha o chamado perigo concreto indeterminado (ou seja: basta a comprovação da direção anormal, não se requerendo uma vítima concreta).

    Mas se ambos exigem o "estar sob a influência" qual é a diferença entre eles? Quando se aplica (só) o Código de Trânsito (art. 165) e quando terá incidência o Direito penal (o art. 306)? (veremos no próximo artigo).

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