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16 de Abril de 2024

Sequestro relâmpago com morte: é crime hediondo

há 15 anos

LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

ROGÉRIO SANCHES CUNHA

Professor da Escola Superior do MP -SP. Professor de Direito penal e Processo penal na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes - Rede LFG e Promotor de Justiça em São Paulo.

Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. CUNHA, Rogério Sanches. Sequestro relâmpago com morte: é crime hediondo. Disponível em http://www.lfg.com.br 19 junho. 2009.

Por força da Lei 11.923 /2009 foi acrescido ao art. 158 um terceiro parágrafo, chamado pelo legislador (na ementa) de "sequestro relâmpago":

"Art. 158 (...)

§ 3º Se o crime é cometido mediante a restrição da liberdade da vítima, e essa condição é necessária para a obtenção da vantagem econômica, a pena é de reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, além da multa; se resulta lesão corporal grave ou morte, aplicam-se as penas previstas no art. 159, §§ 2º e 3º, respectivamente ."

Antes da nova lei, a tipificação desse fato (sequestro relâmpago) gerava indisfarçável controvérsia (na doutrina e na jurisprudência), havendo três correntes:

a) art. 157 , § 2º , V , do CP ;

b) art. 158 do CP ;

c) art. 159 do CP .

Não era incorreto o entendimento de que referido comportamento (popularmente chamado de sequestro relâmpago) configurava qualquer um dos três tipos penais, a depender do "modus operandi" utilizado pelo agente:

a) se para subtrair a coisa alheia móvel o agente precisou privar a vítima da sua liberdade de locomoção, temos o crime de roubo majorado pelo sequestro;

b) se para receber a indevida vantagem econômica o agente, dependendo da colaboração da vítima, restringe sua liberdade de locomoção, configurado estará o crime de extorsão (hoje, qualificada pelo sequestro);

c) se a vantagem depender do comportamento de terceiro, servindo a rápida privação da liberdade da vítima como forma de coagi-lo a entregar a recompensa exigida, extorsão mediante sequestro.

O que se discute, agora, é se o "sequestro relâmpago" (gênero) do art. 158, § 3º (espécie), com resultado morte, é ou não crime hediondo?

Guilherme de Souza Nucci já se manifestou, lecionando que o descuido do legislador não permite considerar o "sequestro relâmpago" como crime hediondo, em nenhuma de suas formas: "A forma eleita para transformar delitos em hediondos é a inserção no rol do art. da Lei 8.072 /90. É o critério enumerativo (...). Não constar desse rol elimina a infração penal do elenco dos hediondos. A falha é, pois, evidente. São hediondos o roubo com resultado morte (mas não o roubo com resultado lesão grave), a extorsão qualificada pela morte (mas não a extorsão com resultado lesão grave), a extorsão mediante sequestro, com resultado lesão grave ou morte. Não se menciona a extorsão com restrição à liberdade, mesmo que com resultado lesão grave ou morte (art. 158 , § 3º , CP) (...). O novo delito do sequestro relâmpago, com resultado lesão grave ou morte da vítima, tem penas compatíveis com a gravidade do fato, mas não ingressa no contexto da Lei 8.072 /90." (Manual de Direito Penal, 5.ed, São Paulo: RT, 2009).

A extorsão do § 3º não está (explicitamente) catalogada no rol exaustivo da Lei nº 8.072 /90 como delito hediondo, sendo vedada analogia contra o acusado. Se do fato resulta na vítima lesão corporal grave, o crime não se converte em hediondo, aplicando-se, tão-somente, as penas previstas no art. 159, § 2º (é extorsão mediante sequestro quod poenam)". Na extorsão, em nenhuma hipótese de lesão corporal o crime é hediondo.

Situação diversa ocorre na provocação (dolosa ou culposa) da morte da vítima, hipótese em que o crime será, sim, hediondo, visto que nada mais é que desdobramento formal do tipo do art. 158, § 2º, tendo o legislador preservado a matéria criminosa, explicitando, somente, seu mais novo" modus operandi ". O tipo penal do § 3º não é autônomo, ao contrário, é derivado e meramente explicitativo de uma forma de extorsão. Em outras palavras, a nova qualificadora (com resultado morte) já estava contida no parágrafo anterior, especificando-se, no derradeiro parágrafo, um meio de execução próprio (restrição da liberdade de locomoção da vítima).

A interpretação literal deve ser acompanhada da interpretação racional possível (teleológica), até o limite permitido pelo Estado humanista - legal, constitucional e internacional - de Direito. As regras aplicadas ao delito geral (art. 158, § 2º) devem ser mantidas ao crime específico (art. 158, § 3º), permanecendo hediondo (quando ocorre o resultado morte). Porque o § 3º não criou crime novo, não disciplinou outro injusto distinto da extorsão (apenas explicitou a forma de execução).

Se a extorsão (simples, genérica) com resultado morte constitui crime hediondo, que sentido teria afirmar que a extorsão (qualificada, específica) não o seria?

De que modo podemos admitir a conclusão de que a extorsão do § 3º do art. 158, com resultado morte, é crime hediondo? Por meio da interpretação extensiva (que não se confunde com a analogia nem com a progressiva). Qual é a diferença entre elas? A seguinte: (a) a interpretação extensiva não foge nem ultrapassa a vontade do legislador; (b) na analogia aplica-se a um fato análogo (B) o que o legislador previu para outra situação (A); (c) na interpretação progressiva atualiza-se a letra da lei feita para a situação A em relação a uma situação B. Não é vontade do legislador abarcar o fato análogo ou posterior. Daí a impossibilidade de analogia e interpretação progressiva contra o réu. O aplicador da lei penal não pode fazer uso da analogia ou da interpretação progressiva contra o réu (porque falta, nesse caso, a vontade do legislador). Da interpretação extensiva ele pode fazer uso, desde que seja inequívoca a vontade do legislador.

Disse o legislador (na lei dos crimes hediondos , art. - Lei 8.072 /1990) que a extorsão com morte é crime hediondo. Ora, não importa a forma de execução do delito (com privação ou sem privação ou restrição da liberdade da vítima). Toda extorsão com morte (por vontade do legislador) é crime hediondo. O § 3º do art. 158 apenas detalhou uma forma de execução do delito (com privação ou restrição da liberdade da vítima). O que vale para a extorsão (simples) com morte, vale também para a extorsão (específica) com morte. Note-se: em nada se alterou o substractum do delito (do injusto penal). O conteúdo do injusto é o mesmo.

O que fez o § 3º foi (apenas) especificar uma das várias formas de execução do delito de extorsão. Ele não criou delito novo. Sim, apenas explicitou uma das suas multiplas possibilidades de execução. Sem ele (sem o § 3º) já era possível encaixar o sequestro relâmpago no art. 158 (aliás, muitos já faziam isso). Na medida em que esse § 3º não inovou o ordenamento jurídico-penal, tendo apenas explicitado uma das formas de execução da extorsão prevista no art. 158, seu regime jurídico segue o que está estabelecido no art. 158 e seus parágrafos, com as correções punitivas do § 3º.

Visão legalista versus visão constitucionalista: qual é o problema da visão legalista do Direito penal? É que ela se prende exageradamente nas formas literais ou gramaticais, sem atinar para o substrato das coisas. O penalista legalista (da Escola técnico-jurídica de Rocco, Binding etc.) foi treinado para decifrar as minúcias linguísticas e simbólicas da lei. Vê as árvores, mas não consegue enxergar a floresta. Vê o acessório, não consegue vislumbrar o principal. Ele se perde nos meandros formais. Perde a noção do proporcional e do razoável. Tem dificuldade de distinguir os âmbitos possíveis de interpretação de um dispositivo legal. Aliás, não é que perde a perspectiva da proporcionalidade, muitas vezes nem chega a conquistá-la.

Se a extorsão genérica com morte é crime hediondo, como se pode negar que a extorsão qualificada (ou especificada) com morte não o seja? Não se trata de violar o princípio da legalidade: essa garantia formal não pode nunca ser esquecida ou aniquilada, dentro do Estado humanista de Direito. Mas se o legislador, na lei, já escreveu que a extorsão com morte é crime hediondo, claro que a nova forma delitiva explicitada no § 3º do art. 158 constitui crime hediondo (quando ocorre morte). Isso nada mais representa que um desdobramento do injusto típico do § 2º. O legislador, no § 3º, não inovou ex abrupto o ordenamento jurídico.

Qual constitui outro erro dessa visão legalista? Para além de não captar o sentido do proporcional e do razoável, dentro, evidentemente, dos limites permitidos pelo princípio da legalidade, a visão legalista cai num outro equívoco que é o seguinte: ela acompanha, subscreve e apoia tudo quanto é bobagem (e arbitrariedades) que o legislador escreve nas leis. Veja o paradoxo: o legalista positivista é capaz de negar a aplicação da mesma lei para fatos substancialmente idênticos e, ao mesmo tempo, aceitar um mundo de atrocidades e arbitrariedade escritas pelo legislador na lei (sem nenhum senso crítico).

Visão constitucionalista: numa visão constitucionalista o fundamental é respeitar a vontade do legislador (garantia formal da legalidade), porém, sempre submetida aos critérios limitadores da razoabilidade, proporcionalidade etc.

A extorsão (especificada no § 3º, quando resulta morte) é crime hediondo? Sim, por força de uma interpretação extensiva (que ainda atende a vontade do legislador, sem entrar na analogia, que é vedada no Direito penal, contra o réu). Mas atenção: daí cabe inferir que todas as disposições da lei dos crimes hediondos devem, então, ter incidência contra o réu (que praticou uma extorsão específica com resultado morte)? Vamos devagar: nem tudo que o legislador projetou para os crimes hediondos é válido. Ao legislar sobre os crimes hediondos ele foi além do que podia (escreveu mais do que devia). Ao proibir liberdade provisória, ao proibir progressão de regime etc., foi muito além do que lhe competia. Ou seja: quem tem o domínio da visão constitucionalista do Direito consegue distinguir o que é legítimo (válido) e o que é ilegítimo (inválido) (consoante Ferrajoli). Esse exercício de proporcionalidade, razoabilidade, é que falta ao legalista (que é muito simplista, muito subsuntivista, muito formalista). O constitucionalista trabalha com outro parâmetro de referência: que é a ponderação, a equidade, o equilíbrio etc.

Concluindo: o crime de extorsão previsto no § 3º do art. 158 do CP , quando resulta morte, é crime hediondo, por força de uma interpretação extensiva do § 2º. Mas nem todas as disposições da lei dos crimes hediondos são aplicáveis, ou seja, somente as constitucionalmente legítimas é que podem ser sustentadas no Estado humanista de Direito, que é a síntese do Estado legal, constitucional e internacional de Direito.

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