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23 de Abril de 2024
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    Embriaguez ao volante: basta a prova testemunhal(?)

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

    Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Embriaguez ao volante: basta a prova testemunhal (?) Disponível em http://www.lfg.com.br 14 julho. 2009.

    O sujeito, dirigindo veículo em via pública, chegou a bater numa árvore. Aparentemente estava bêbado. Não foram feitos o exame de sangue nem bafômetro. Questionamentos:

    1º) A prova testemunhal comprova a embriaguez?

    Sim. Mas não é suficiente para comprovar a taxa alcoólica exigida pelo art. 306 do CTB.

    2º) A prova testemunhal comprova a quantidade de álcool por litro de sangue?

    Não.

    3º) Quais são os meios probatórios que possibilitam quantificar a taxa alcoólica?

    Exame de sangue e bafômetro (havendo discusão em relação a esse último).

    4º) O legislador acertou ao exigir 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue?

    Não. Errou. Crasso erro do legislador. Bastava exigir uma direção perigosa e a comprovação da alcoolemia (sem mencionar qualquer quantidade).

    5º) Pode o juiz, via hermenêutica, suprir as deficiências legislativas?

    Não. Juiz não é legislador. Juiz não pode fazer abstração dos requisitos típicos. Nem suprir as dificiências legislativas via interpretação da lei.

    Decisão da Segunda Câmara Criminal do TJSC: Apelação Criminal n. 3, de Seara/SC. Relator: Des. Irineu João da Silva. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. ART. 306 DA LEI N. 9.503/97. NECESSIDADE DE DAR INTERPRETAÇÃO HERMENÊUTICA À LEI N. 11.705/2008, PARA ATENDER AOS SEUS PRÓPRIOS FINS. AUSÊNCIA DE TESTE DO BAFÔMETRO. ESTADO ETÍLICO QUE PODE SER DEMONSTRADO POR OUTRAS PROVAS. RECURSO MINISTERIAL PROVIDO. Se "o desígnio claríssimo do legislativo foi o de impor maior rigor no combate à embriaguez ao volante, qual o sentido em se infundir óbice à prova testemunhal como suficiente para a constatação do seu estado etílico?!" (ROGER BRUTTI). Ao operador do direito, atento às incongruências do legislador, outra solução não resta do que lançar mão da hermenêutica jurídica para decifrar a vontade da lei em face da realidade do país e da necessidade de impor maior rigor aos infratores das normas de trânsito, não obstante as imperfeições humanas. Donde se conclui, na linha esboçada pela doutrina, que, fiel ao que prescreve o art. 291 do CTB, aplicando-se aos crimes de trânsito as normas gerais do Código de Processo Penal, nas infrações que deixam vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito (art. 158), mas, não sendo ele possível, por haverem desaparecidos os vestígios, a prova testemunhal poderá suprir-lhe a falta (art. 167). Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Criminal n. 3, da comarca de Seara, em que é apelante A Justiça Púbica, por seu promotor, e apelado Geovani Guisolphi: ACORDAM, em Segunda Câmara Criminal, por votação unânime, conhecer do recurso e, por maioria, dar-lhe provimento, para cassar a decisão que absolveu sumariamente o apelado, prosseguindo- se a ação penal. Vencido o Exmo. Sr. Des. Túlio José Moura Pinheiro. Custas legais.

    Comentários: o artigo 277 do CTB cuida dos meios probatórios que podem conduzir à constatação da embriaguez ao volante. Por força da Lei 11.705/2008, agregou-se ao art. 277 um novo parágrafo (§ 2º) que diz o seguinte:

    "§ 2º A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor".

    O art. 277 diz: "Todo condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado".

    O § 1º desse mesmo artigo diz: "Medida correspondente aplica-se no caso de suspeita de uso de substância entorpecente, tóxica ou de efeitos análogos".

    As três formas clássicas de se provar a embriaguez ao volante são: (a) exame de sangue; (b) bafômetro e (c) exame clínico. No novo § 2o o legislador ampliou a possibilidade da prova, falando em outras provas em direito admitidas.

    A prova da embriaguez não se restringe, mais, às clássicas formas. Outras provas em direito admitidas podem ser produzidas, para que sejam constatados os notórios sinais de embriaguez, a excitação ou o torpor apresentado (s) pelo condutor. Por exemplo: prova testemunhal, filmagens, fotos etc.

    Em matéria de prova da embriaguez há, de qualquer modo, uma premissa básica a ser observada: ninguém está obrigado a fazer prova contra si mesmo (direito de não-autoincriminação, que vem previsto de forma expressa no art. 8º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que possui valor constitucional - HC 87.585-TO - cf. GOMES, L.F. e MAZZUOLI, Valério, Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos , São Paulo: RT, 2008). O sujeito não está obrigado a ceder seu corpo ou parte dele para fazer prova (contra ele mesmo). Em outras palavras: não está obrigado a ceder sangue, não está obrigado a soprar o bafômetro (porque essas duas provas envolvem o corpo humano do suspeito e porque exigem dele uma postura ativa). Havendo recusa, resta o exame clínico (que é feito geralmente nos Institutos Médico-Legais) ou a prova testemunhal.

    O motorista surpreendido, como se vê, pode recusar duas coisas: exame de sangue e bafômetro. Mas não pode recusar o exame clínico. E se houver recusa desse exame? Disso cuida o § 3º (novo) que diz:

    "§ 3ºo (do art. 277). Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo."

    A leitura rápida desse dispositivo pode levar o intérprete a equívocos. O texto legal disse mais do que podia dizer. Veremos em seguida. Na prática, alguns delegados estão falando em prisão em flagrante por desobediência (quando houver recusa ao exame de sangue, ao bafômetro ou ao exame clínico). Não é isso, propriamente, o que diz o novo § 3º do art. 277 do CTB. Como se vê, o correto não é falar em desobediência, sim, nas sanções administrativas do art. 165.

    Quando elas incidiriam? Pela letra da lei, quando o condutor recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput do artigo. Na verdade, não é bem assim (a lei disse mais do que devia). Note-se que todo suspeito tem direito de não produzir prova contra si mesmo. Logo, não está obrigado a fazer exame de sangue ou soprar o bafômetro. Nessas duas situações, por se tratar de um direito, não há que se falar em qualquer tipo de sanção (penal ou administrativa).

    Conclusão: o § 3º que estamos comentando só tem pertinência em relação ao exame clínico. A recusa ao exame de sangue e ao bafômetro não está sujeita a nenhuma sanção. Quando alguém exercita um direito (direito de não-autoincriminação) não pode sofrer qualquer tipo de sanção. O que está autorizado por uma norma não pode estar proibido por outra. Lei seca gera impunidade

    As polêmicas geradas pela famosa "lei seca" (Lei 11.705/2008) ainda não terminaram. Os objetivos fixados pelo legislador foram: 1) estabelecer alcoolemia zero (no que diz respeito à infração administrativa); 2) tratar o embriagado com rigidez máxima. A fiscalização severa logo após a edição da lei conseguiu mobilizar a sociedade. Isso está correto e todos nós apoiamos, desde que não haja abusos. Na parte criminal, entretanto, como bem ponderou Aldo de Campos Costa (no portal www.lfg.com.br) a nova lei é extremamente benéfica aos motoristas embriagados.

    A questão é simples: antes do advento da nova lei o crime de embriaguez ao volante (art. 306 do CTB) não exigia nenhuma taxa de alcoolemia. Bastava a existência de um condutor anormal (dirigir sob a influência do álcool) e uma direção anormal (que coloca em risco a segurança viária). Agora, depois da Lei 11.705/2008, só existe crime quando a concentração de álcool no sangue atinge o nível de 0,6 decigramas.

    Conclusão: todas as pessoas que estão sendo processadas ou mesmo que já tenham sido condenadas pelo delito do art. 306 cometido até o dia 19.06.08, desde que tenham sido surpreendidas com menos de 0,6 decigramas de álcool por litro de sangue acham-se "anistiadas". Todas! Houve abolição do delito. Em outras palavras: o que antes era delito se transformou em infração administrativa. Nenhuma conseqüência penal pode subsistir para esses motoristas. A lei seca trouxe lá sua surpresa: na parte criminal, beneficiou todos os processados ou condenados.

    Se a nova lei vai alcançar seu objetivo de reduzir o número de mortes no Brasil não sabemos, o que é certo, desde logo, é que ela (pela sua redação completamente equivocada) veio beneficiar milhares de motoristas embriagados que foram condenados ou que estão sendo processados pelos delitos que cometeram.

    Mas a famosa "lei seca" não beneficiou somente os que cometeram delito até o dia 19.06.08. Ela é, também, extremamente favorável aos que vão delinqüir daqui para frente. Vejamos: as duas únicas formas correntes de se comprovar no Brasil a taxa de dosagem alcoólica são: exame de sangue e bafômetro. A esses dois meios de prova o motorista suspeito não está obrigado a se submeter, porque ninguém é obrigado a ceder seu corpo para fazer prova contra si mesmo (princípio da não auto-incriminação).

    E certo que existem outras formas de se comprovar a embriaguez: exame clínico, fotos, prova testemunhal. Mas nenhum desses meios consegue definir (com precisão) a quantidade de álcool no sangue. Logo, se o motorista recusa o exame de sangue e o bafômetro (o que é um direito seu, diga-se de passagem, não podendo ser punido nem sequer administrativamente por essa recusa), ficará praticamente impossível ao poder público comprovar o nível de dosagem alcoólica no motorista.

    Conclusão: sem a prova da materialidade do delito nem sequer prisão em flagrante pode haver. De outro lado, sem tal materialidade, não há como comprovar a existência do crime. Havendo prova de que o agente estava bêbado mas não se comprovando o nível de dosagem alcoólica, pune-se o sujeito pela infração administrativa, mas não há que se falar em delito.

    A lei seca, como se vê, teve a virtude de sacudir a polícia e, em conseqüência, a sociedade brasileira. Na sua parte administrativa (que é muito boa), desde que combinada com a severa fiscalização que está acontecendo, ela pode gerar uma nova cultura, a de jamais dirigir depois de beber. Tudo isso é muito positivo. Na sua parte criminal, no entanto, foi um desastre: beneficiou não só os delinqüentes pretéritos como criou uma forma de "anistia" para todos os criminosos futuros.

    A intenção do legislador foi a de endurecer o Código de Trânsito contra todos os motoristas bêbados (que são responsáveis pela maior parte das 35 mil mortes por ano no Brasil). Mas uma coisa é o que o legislador pretende fazer e outra muito distinta é o que ele escreve nas leis. A técnica legislativa no nosso país é extremamente deficiente. E o juiz não pode, via interpretação, criar novos tipos penais ou negar as exigências típicas contidas na lei. O juiz, ademais, não pode confundir vontade do legislador com a vontade da lei. Erro crasso comete o juiz quando, para atender a vontade do legislador, viola os limites normativos contidos na lei.

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    Fica difícil comprovar que motorista causador de acidente de trânsito estava embriagado, uma vez que em acidentes sem vítimas a autoridade policial competente não atende. continuar lendo