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19 de Abril de 2024
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    Crimes contra a Humanidade, a Ditadura Argentina e as Primeiras Condenações dos Torturadores

    há 15 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br) Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Crimes contra a Humanidade, a Ditadura Argentina e as Primeiras Condenações dos Torturadores. Disponível em http://www.lfg.com.br - 15 de setembro de 2009.

    Sem sombra de dúvida a Argentina espelha, no que diz respeito à investigação e punição dos crimes ocorridos durante as ditaduras latino-americanas, o melhor exemplo de respeito à ordem jurídica universal (nesse sentido Malarino, citado por Marcos Zilli, em Memória e verdad e, coordenação de Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 100).

    A Corte Suprema de Justiça da Nação, no pedido de extradição de Gerhard Bohne, formulado pelo governo alemão, fez uma clara distinção entre crime contra a humanidade e crime político (e acabou deferindo a extradição). Gerhard Bohne participou das atrocidades nazistas e contribuiu para a eliminação de enfermos mentais. Sublinhou a Corte argentina que não são crimes políticos os graves atentados à moral e ao senso comum dos povos civilizados.

    A proibição de extradição de estrangeiros no caso dos crimes políticos possui uma finalidade altruísta de respeitar as pessoas que se opõem aos governos autoritários ou totalitários. Esses benefícios típicos dos crimes políticos não podem ser estendidos aos crimes contra a humanidade (que emanam de políticas governamentais e são praticados por agentes públicos ou privados, que promovem tal política).

    No que diz respeito à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade a Corte Argentina vem, majoritariamente, sustentando o seguinte: os costumes internacionais (ou seja: os instrumentos internacionais) já contemplavam a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, mesmo antes de essa regra vir para os ordenamentos jurídicos nacionais ou para a Convenção específica sobre o tema.

    A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade é de data antiga (de 1946: Resoluções da ONU de 13.02.46 e de 26.12.46), não de data recente. De outro lado, ela está em consonância com os preceitos constitucionais que mandam respeitar os direitos humanos assim como com a obrigação de todos os países da ONU de investigarem e punirem os delitos atentatórios à humanidade. Os princípios típicos do direito penal internacional foram recepcionados pela Constituição (no que diz respeito à CF brasileira, veja o art. , ). A repulsa e o horror que os crimes contra a humanidade geram para a consciência universal impedem que eles fiquem impunes.

    Princípio da legalidade e imprescritibilidade: no plano e na ordem internacional (universal), que rege os delitos contra a humanidade, a legalidade se dá de forma distinta. Como não existe um Congresso fabricando leis, outras são as fontes do direito penal internacional e universal. No que diz respeito à imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, a fonte de tal entendimento são resoluções da ONU (ou seja: instrumentos da ONU). Exigir a legalidade estrita nesse caso (ou seja: no plano internacional) significa apoiar todo tipo de violação dos direitos humanos.

    O princípio da legalidade não pode servir de instrumento de opressão (e violação dos direitos humanos). Claro que o plano internacional e universal (sobretudo no ano de 1946) não se confunde com o plano interno. Internamente tudo que não está na lei não vale (em matéria criminal). Mas distinta é a configuração jurídica internacional ou universal (que é formada de instrumentos e tratados). A garantia da legalidade é a regra. A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, contemplada nas Resoluções da ONU, é exceção. E tudo isso foi recepcionado pela Constituição (tanto argentina como brasileira).

    Os crimes contra a humanidade (cometidos no nazismo e nas ditaduras militares) assim como os crimes de genocídio não podem ser tratados como crimes comuns (ou políticos). São crimes que ostentam um excepcional grau de crueldade e de tortura moral e física. À luz do ius cogens (ou seja: do direito universal) os primeiros (crimes contra a humanidade e genocídio) são imprescritíveis. O transcurso do tempo, nesses casos, não afasta a punibilidade dos delitos (que afetam de modo profundo a consciência universal).

    Tudo quanto acaba de ser dito pode ser lido em várias sentenças da Corte de Justiça argentina, destacando-se os Casos Clavel, Simon e Mazze o, analisados por Marcos Zilli (em Memória e verdade , coordenação de Inês Virgínia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, p. 104 e ss.).

    A imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade vale inclusive para os fatos ocorridos antes da Convenção respectiva (de 1968) porque essa regra já estava estabelecida pelo ius cogens desde 1946 (instrumentos da ONU).

    Leis de anistia e crimes contra a humanidade: a Corte Suprema argentina também declarou a inconstitucionalidade das leis de anistia dos crimes cometidos durante a ditadura militar (lei do ponto final e lei da obediência devida, conhecidas como leis do perdão): os Estados filiados à cultura jurídica da ONU não podem renunciar à punição dos delitos graves que atentam contra a humanidade (assim como contra a consciência universal). Nem a proibição da retroatividade da lei penal mais grave nem a garantia da coisa julgada pode ser invocada para proteger o autor de um crime contra a humanidade.

    Primeiras condenações: uma vez declaradas inconstitucionais pela Corte Suprema as leis do perdão (lei do ponto final e lei da obediência devida), abriu-se caminho para a abertura de processos contra os torturadores da ditadura militar argentina. As primeiras condenações (de cinco pessoas, militares do exército e policiais) aconteceram no dia 13.08.09. A ditadura militar argentina durou de 1976 a 1983. Durante esse período os ditadores (e quem atuava em nome deles) sequestraram, torturaram e mataram várias pessoas (em regra isso ocorria no regimento Campo de Mayo, que fica a vinte e seis quilômetros de Buenos Aires).

    As primeiras condenações (depois das decisões da Corte argentina que julgaram inconstitucionais as leis do perdão) dizem respeito à morte de Floreal Avellaneda (que tinha catorze anos quando foi sequestrado). Os policiais procuravam seu pai (um militante de esquerda). Não o encontraram e deliberaram levar Floreal e sua mãe. Esta sobreviviu. Floreal não teve a mesma sorte. Foi torturado e jogado a um rio (precisamente quando completava quinze anos).

    O primeiro a ser condenado foi o general (já aposentado) Santiago Omar Riveros, de oitenta e seis anos. Foi condenado a prisão perpétua. Antes já tinha sido condenado, mas acabou sendo beneficiado pelas leis do perdão. A Corte Suprema julgou tais leis inconstitucionais e ainda declarou a invalidade da sentença anterior. Outros quatro militares do exército também foram condenados, assim como um policial (penas de oito a vinte e cinco anos de prisão).

    Mais de cinco mil pessoas passaram pelo Campo de Mayo durante a ditadura militar (1976-1983). Na atualidade, quarenta processos ainda tramitam para a apuração dos crimes contra a humanidade cometidos durante a ditadura militar argentina. Isso jamais teria sido possível caso a Corte Suprema não tivesse julgado inconstitucionais as leis que perdoaram os torturadores.

    Os crimes contra a humanidade são imprescritíveis e não admitem anistia (auto-anistia). Tampouco as sentenças absolutórias valem. Os condenados cumprirão suas penas em cárceres comuns (não militares). Já começou, na Argentina, o ajuste de contas com os criminosos da ditadura, que não cometeram crimes políticos, sim, crimes contra a humanidade.

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