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19 de Abril de 2024

Lei do abate: inconstitucionalidade

há 14 anos

LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Lei do abate: inconstitucionalidade. Disponível em http://www.lfg.com.br - 29 outubro. 2009.

No dia 03.06.09 pilotos da Força Aérea Brasileira (FAB) dispararam tiros de advertência contra um monomotor que transportava 176 quilos de cocaína, em Rondônia, na região de fronteira do Brasil com a Bolívia. A ação só foi possível por causa da Lei do Abate, que entrou em vigor após ter sido regulamentada em 2004.

Foi o Decreto 5.144/2004 que regulamentou os 1º, 2º e 3º do artigo 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei 7.565/1986, que foi modificada em 1998, para permitir o"abate de aeronaves").

De acordo com nossa opinião são os seguintes os dispositivos constitucionais frontalmente violados pelo citado Decreto: art. , II, VI, VII e art. , caput, incisos II, III, XXXVII, XLVI, XLVII, LIII, LIV, LV, LVII e todos da Constituição Federal de 1988-CF/88.

Dentre os dispositivos indicados destacamos os princípios da inviolabilidade do direito à vida, proibição da pena de morte em tempo de paz e devido processo legal. Tais garantias consistem cláusula pétrea[1] , logo, impossível deliberação em sentido contrário.

Alice Bianchini[2] leciona que "O princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos configura a função básica do direito penal". O direito à vida é certamente o bem jurídico de maior importância. Ninguém pode ser privado dela arbitrariamente (de acordo com o art. 4º da CADH).

Paulo Queiroz [3] tratando do Decreto 5.144/2004 afirma que "a pena de morte, que sempre existiu entre nós informalmente, passou a contar com o apoio oficial explícito, tudo a revelar quão violento e antidemocrático pode ser o direito democrático (...)".

Emília de Podestá [4] lembra que "a conduta de quem abate uma aeronave, matando seus ocupantes, subsume-se ao art. 121 (...)". A referida autora[5] ressalta que inexiste na situação em análise qualquer causa de exclusão da ilicitude e deveria ser observado o princípio da proporcionalidade.

Roxin[6] leciona que a eficácia de uma norma penal depende da sua utilidade para a proteção de bens jurídicos e que a norma penal "desproporcional" é ineficaz (ou seja: inválida).

O princípio da proporcionalidade em sentido estrito tem por significação a necessária proporção entre o sacrifício de bens e os males a evitar. Esse é um dos princípios limitadores da atuação do legislador (consoante lição de Alice Bianchini[7]). A chamada lei do abate viola flagrantemente o princípio citado. Não existe nenhuma proporcionalidade na ação de matar o ocupante (ou ocupantes) de um avião, suspeito de tráfico de drogas. Se outro bem jurídico de igual relevância estivesse em jogo seria diferente.

A Lei 11.343/2006 já estabelece normas para repressão ao tráfico ilícito de drogas e define crimes. Na ânsia de defender a sociedade, o legislador infraconstitucional deu solução incompatível com a Lei Maior. O legislador deve criar outras formas de controle que não impliquem em flagrante violação dos direitos fundamentais[8].

Reforçando a inconstitucionalidade da medida ainda podemos citar a possibilidade de erros, como lembra Bruno Barata Magalhães[9]. Há ainda o risco de possível uso político, movido por interesses pessoais e casuísmos. Zaffaroni [10] afirma que é impossível limitar os direitos e garantias de todos os cidadãos em razão da existência de um inimigo, estranho ou hostis e destaca que tal orientação traz o risco de identificação errônea e, portanto, condenações e penas a inocentes.

Manuel Cancio Meliá[11] tratando do Direito Penal do inimigo como reação internamente disfuncional, destaca que os fenômenos que ensejariam reação do "Direito Penal do inimigo" constituem riscos para a existência da sociedade e conclui que > que se afirmam os parâmetros fundamentais das sociedades correspondentes em um futuro previsível".

Roxin[12], tratando dos limites impostos ao legislador, ensina o que segue:" Em primeiro lugar, é claro que são inadmissíveis as normas jurídico-penais unicamente motivadas ideologicamente ou que atentam contra Direitos fundamentais e humanos ".

Alice Bianchini[13] leciona que" A intervenção penal, sempre que não se fizer acompanhar de uma proteção significativamente eficaz, com custo suportável, deverá ser afastada ".

Em sentido contrário, José Rodrigues Filho[14] entende ser constitucional o abate de aeronaves ante a existência de causa de exclusão da antijuridicidade (exercício regular do direito):" a conduta Estatal, (...), que venha a culminar na destruição da aeronave classificada como hostil, amolda-se, (...), no exercício regular do direito de preservação do bem jurídico constitucionalmente tutelado que é a segurança pública (...) ". Ocorre que a segurança pública, genericamente invocada, não tem nenhuma proporcionalidade com o bem jurídico vida. A falta de razoabilidade destrói o valor do argumento invocado.

A medida de destruição nos termos do Decreto 5.144/2004, em suma, implica em ostensiva afronta ao texto constitucional e incompatibilidade com princípios do ordenamento jurídico brasileiro[15].

BIBLIOGRAFIA

BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal . São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002; JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo : noções e críticas. 4. ed. atual. e ampl. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; MAGALHAES, Bruno Barata. Lei do Abate viola o princípio do direito à vida . Disponível em: , 07 jul. 2009. Acesso em: 09 set. 2009; PODESTÁ, Emília Glück. A inconstitucionalidade da"Lei do Abate ". Disponível em: , 08 jul. 2005. Acesso em: 09 set. 2009; QUEIROZ, Paulo. Seriam as leis inúteis? Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2009; RODRIGUES FILHO, José Moaceny Félix. A legislação do abate de aeronaves. Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 444, 24 set. 2004. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2009; ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal . 2. ed. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no Direito penal . 2. ed. Trad. Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

[1] Art. 600,4ºº, IV, daCF/888.

[2] BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 (Série As Ciências Criminais no Século XXI, vol. 7), p. 30.

[3] QUEIROZ, Paulo. Seriam as leis inúteis? Disponível em: . Acesso em: 09 set. 2009.

[4] PODESTÁ, Emília Glück. A inconstitucionalidade da" Lei do Abatee ". Disponível em: , 08 jul. 2005. Acesso em: 09 set. 2009.

[5] Ibidem. Pela inconstitucionalidade do Decreto 5.144/2004, conferir ainda: PEDRO, Fábio Anderson de Freitas . A inconstitucionalidade da

"Lei do Tiro de Destruição". Disponível em:: . Acesso em: 17 set. 2009.

[6]ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2. ed. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 27.

[7] Ibidem, p. 102.

[8] Emília de Podestá sugere medidas de controle de compra de aeronaves, acompanhamento quando em espaço aéreo nacional e a celebração de tratados entre os países lindeiros.

[9] MAGALHAES, Bruno Barata. Lei do Abate viola o princípio do direito à vida. Disponível em: http://www.conjur.com.br, 07 jul. 2009. Acesso em: 09 set. 2009. Bruno Magalhães recorda que:" Em 2001, no Peru, um avião que transportava missionários foi abatido por engano, confundido com uma aeronave suspeita ".

[10] ZAFFARONI, E. Raúl. O inimigo no Direito penal. Trad. Sérgio Lamarão. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007 (Coleção Pensamento Criminológico, vol. 14), p. 118-121.

[11] JAKOBS, Günther; CANCIO MELIÁ, Manuel. Direito Penal do inimigo: noções e críticas. 4. ed. atual. e ampl. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 102.

[12] ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. 2. ed. Org. e trad. André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 20.

[13] BIANCHINI, Alice. Pressupostos materiais mínimos da tutela penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002 (Série As Ciências Criminais no Século XXI, vol. 7), p. 146-147.

[14] RODRIGUES FILHO, José Moaceny Félix. A legislação do abate de aeronaves. Análise diante dos direitos fundamentais e das normas penais permissivas. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 444, 24 set. 2004. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2009.

[15]" Em uma enquete realizada pela internet, pelo site www.pop.com.br, que reuniu quase 9,5 mil votos, 87% dos internautas se posicionaram a favor da medida (é uma forma legítima de defender a soberania) e 13% se disseram contrários ao tiro de destruição (só deveria ser usado em casos de guerra) ". Entenda a Lei do Tiro de Destruição. Disponível em: . Acesso em: 17 set. 2009.

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Dr. LUIZ FLÁVIO GOMES, me chamo Geraldo Habib, sou piloto de caça da FAB, tenho profundo respeito pelo conhecimento de V.Sa, porém discordo de seu posicionamento, gostaria de saber a possibilidade de lhe enviar meu TCC sobre tal lei, para argumentarmos sobre o tema a fim de alevarmos nossos conhecimentos. Grato pela atenção. continuar lendo

Olá Boa noite! quanto ao Dr Luiz Flavio eu não sei. Mas eu gostaria muito de ver sua defesa do seu tcc se puder me enviar fico agradecida. biawimoveis@gmail.com continuar lendo

Amigo, muito me agradaria conhecer seu trabalho de conclusão, se possível.
Abraços!
jordycpantoja@gmail.com continuar lendo

Embora o texto tenha respeitável embasamento teórico, carece de um mínimo conhecimento técnico quanto à aplicação das Medidas de Policiamento do Espaço Aéreo.

A medida de Destruição (nome do qual discordo) consiste do tiro de Detenção. O Objetivo desta medida é impedir que a aeronave continue em voo, especialmente na direção em que está seguindo. É importante destacar este conceito. O objetivo não é destruir a aeronave, mas impedir o prosseguimento do voo. Assim, o objetivo não é "Destruir", mas sim "Deter".

As aeronaves de combate da FAB têm poder de fogo para destruir rapidamente uma aeronave do porte daquelas usadas no tráfico de drogas. No entanto, a aplicação do tiro de Detenção é feita de forma que os danos são causados gradativamente, danto chance para que, ou o piloto passe a cumprir a determinação das autoridades de defesa aérea, ou consiga realizar um pouso controlado, poupando a vida dos ocupantes.

A alegação do autor, de que a medida seria a aplicação de uma "pena de morte" está completamente equivocada. A medida não é uma punição, nem o objetivo é matar. A medida é a unica forma de empregar a força a fim de evitar que uma aeronave continue sendo utilizada para ato criminoso.

Se, tecnicamente, houvesse outra forma para deter uma aeroanve em voo, certamente esta seria a mais adequada. No entanto, o tiro de detenção, da forma em que é aplciado, é o único recurso para barrar o uso de aeronaves para tráfico de drogas e de armamento. continuar lendo

Data venia, não vislumbro qualquer inconstitucionalidade na chamada "Lei do abate". O trânsito de aeronaves não identificadas no espaço aéreo nacional é questão de segurança nacional, não somente de segurança pública. Embora tais aeronaves sejam utilizadas em grande maioria por traficantes, não se descarta a possibilidade de serem usadas para outros fins, inclusive atos terroristas, ainda que nosso pacífico país não seja, em tese, visado por estes grupos. Acredito que praticamente todos os países possuem protocolo militar semelhante, onde qualquer aeronave não identificada que se recuse obedecer o comando de aeronaves militares seja prontamente abatida. continuar lendo

Não concordo de forma alguma com seu texto. A lei deve adequar-se a realidade, no Brasil, um país com grandes fronteiras fica quase impossível lidar com essa situação de maneira pacífica, você só realiza crítica para com a lei que tenta impedir que drogas entrem e estraguem cada vez mais este país, porém não propõe nada, apenas refuta, realmente eu sinto grande desprezo por pessoas igual a você que nunca estiverem frente a frente com traficantes internacionais ou até mesmo não conhecem a situação da fronteira brasileira e querem opinar sobre como o trabalho deve ser realizado. Quer buscar alguém para comentar alguma conclusão dessa lei? chame um policial federal que trabalhe em fronteiras. continuar lendo