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19 de Abril de 2024
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    Juiz que investiga não pode julgar (STJ suspende a ação penal no caso Castelo de Areia)

    há 14 anos

    LUIZ FLÁVIO GOMES (www.blogdolfg.com.br) Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

    O Min. Asfor Rocha (presidente do STJ), no dia 14.01.10, ao suspender o andamento da ação penal relacionada com a Operação Castelo de Areia (ação intentada contra diretores da Camargo Correia), que tramita na Sexta Vara da Justiça Federal em SP, desviou o foco do mais importante (que é a falta de imparcialidade do magistrado) para se apoiar em argumentos controvertidos, como são o das denúncias anônimas assim como o da falta de fundamentação na interceptação telefônica. A decisão recebeu apoio (editorial do O Estado de S. Paulo de 18.01.10, p. A3) e também críticas (Claudio Weber Abramo, O Estado de S. Paulo de 03.02.10, p. A2).

    Com o foco bem ajustado (o juiz que investiga perde sua imparcialidade), no dia 18.12.09 o Min. Arnaldo Esteves Lima (da Quinta Turma do STJ) determinou a suspensão de todos os processos relacionados com a Operação Satiagraha (que tramita na mesma Vara). Já no dia 15.12.09 o TRF (3ª Região) havia afastado o juiz De Sanctis do caso MSI-Corinthians (também por falta de imparcialidade).

    Na primeira decisão acima mencionada (rel. Min. Asfor Rocha) a suspensão do processo não teve por base a parcialidade do juiz, mas essa deveria ser a motivação da decisão, porque quando o TRF 3ª Região julgava o habeas corpus do caso Castelo de Areia o juiz De Sanctis enviou para a Turma uma estranha e intempestiva comunicação secreta não apensada aos autos, onde informava que toda investigação teve origem numa denúncia anônima e que as medidas judiciais foram tomadas com base numa apuração preliminar da Polícia Federal, à qual as partes não tiveram acesso. O fato de o juiz mandar um ofício secreto, solicitando a sua não juntada aos autos, já evidencia, por si só, interesse na causa (que fulmina a garantia da imparcialidade, fundada na neutralidade e no desinteresse do juiz).

    No tempo do sistema inquisitivo (Idade Média) o juiz (desgraçadamente) investigava e julgava o caso. O risco de ser parcial (aliás, a certeza) era absolutamente inevitável. Quem busca provas, quem investiga um fato, quem se compromete psicologicamente com uma determinada posição de parte interessada, não reúne, depois, condição alguma para ser o juiz imparcial do processo. Somente um juiz sobrenatural seria capaz de fazer o contrário (como diria E. Schmidt).

    O juiz que investiga não pode julgar, porque se sabe que a fase preliminar de investigação não é contraditória nem pública. As Cortes europeias assim como a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, sobretudo no caso Piersack , consideram contrário ao padrão objetivo da imparcialidade do juiz (contrário aos padrões civilizatórios) o fato de ele estar envolvido anteriormente com funções de investigação e persecução ou exercer ambas as funções (caso Kristinson ) ou quando o Ministério Público cumpre funções de julgar (caso Huber) ou quando o tribunal acaba também exercendo funções de instrução de ofício (caso Cubber ). Quando o juiz assume compromisso ativo com a função de investigar (ou de acusar) dá ensejo à geração de dúvida (frequentemente razoável) sobre sua parcialidade.

    Na verdade, há uma incompatibilidade lógica nessas funções (Montero Aroca). Qualquer tipo de interferência ativa do juiz nas diligências investigatórias, qualquer tipo de contato ativo do juiz com a produção das provas nessa etapa, torna-o incompatível com a fase processual (propriamente dita). O juiz que preside ou que interfere diretamente na fase preliminar de investigação vai tomando decisões no sentido de que sejam descobertos os fatos e sua autoria, decreta prisões, autoriza a quebra de vários sigilos etc. Quanto melhor esse juiz cumpre suas funções direta ou indiretamente investigativas (nos ordenamentos em que essa tarefa compete a um juiz, não à polícia ou ao Ministério Público), mais suspeito (para o processo) ele se torna, porque ele vai assumindo impressões, tirando ilações e formando pré-conceitos, pré-juízos.

    O juiz vai formando sua convicção ao longo da investigação e, desse modo, quando chega a fase processual ele já se encontra totalmente contaminado pela parcialidade. O juiz imparcial deve formar sua convicção de acordo com a prova produzida em juízo, sob o contraditório (CPP, art. 155), e isso se torna impossível quando ele participou (direta ou indiretamente) da fase preliminar de investigação. Só proibindo o juiz de todo poder de iniciativa (investigativa) (dizia Calamandrei) é que se pode obter dele a objetividade que constitui a virtude suprema do magistrado [...] Não se pode esquecer que o processo (sic) penal inquisitivo, onde os ofícios, de investigar os delitos e de julgá-los, se acumulam em uma mesma pessoa, tornou-se tristemente famoso na história como instrumento típico de arbítrio policialesco; quando se confundem as funções, psicologicamente incompatíveis, de investigador e de juiz, no ato da acusação está já in nuce a condenação, e a consciência do juiz se acha extraviada pelo amor próprio do acusador.

    Se o juiz está acima das partes, ele não pode atuar senão quando é acionado (Filangieri). Bem dizia Tocqueville: o poder judiciário, por natureza, carece de ação. Para que ele se mova alguém tem que colocá-lo em movimento. Não pode, por si mesmo, perseguir criminosos, buscar injustiças ou examinar os fatos (previamente). O poder judiciário viola sua natureza passiva (e imparcial) quando atua por si mesmo (na investigação ou acusação).

    O clássico princípio do ne procedat iudex ex officio visa a exatamente resguardar o magistrado de qualquer comprometimento psicológico prévio com a prova. Daí a inconstitucionalidade do art. 3.º da Lei 9.034/95, reconhecida pelo STF, na ADINn 1570, que atribuía ao juiz competência para a busca de provas e ao mesmo tempo para julgar o caso.

    O juiz que envia a um tribunal um ofício secreto, justificando as medidas judiciais tomadas em um procedimento investigatório clandestino, que pede para que seu ofício não seja juntado aos autos, que as partes interessadas não tenham conhecimento dele, para além de retroceder ao tempo da inquisição e de violar o princípio da publicidade dos atos judiciais, está claramente impedido de ser o juiz da causa, porque envolvido psicológica e ativamente com a investigação precedente.

    Sendo a imparcialidade do juiz uma das mais importantes garantias do devido processo, resulta claro que todos nós, operadores do Poder Jurídico, por ela devemos lutar, com todas as nossas forças, porque ela faz parte do nosso modelo político-jurídico de organização, sintetizado hoje no denominado Estado constitucional e humanista de direito.

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    1 Comentário

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    este assunto é de grande inportância para a construção do devido processo legal, portanto gostaria de saber da existência de decisões (acórdãos) sobre a matéria.

    obrigado, cícero. continuar lendo