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23 de Abril de 2024
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    Descriminização do homicídio piedoso - Eudes Quintino de Oliveira Júnior

    há 14 anos

    Como citar este artigo: JUNIOR, Eudes Quintino de Oliveira. Descriminização do homicídio piedoso. Disponível em http:// www.lfg.com.br - 01 de abril de 2010. DESCRIMINIZAÇAO DO HOMICÍDIO PIEDOSO

    A evolução constante da humanidade vai transformando o pensamento do homem, direcionando-o para uma nova ordem moral, social e ética. Tanto é que os conceitos vão se definindo dentro de uma estrutura dinâmica, que se movimenta em velocidade até mesmo incompatível com a história do homem. Basta ver que, a título de exemplo, até recentemente, o casamento, que era indissolúvel, passou a permitir o desquite e, logo em seguida, o divórcio. Esse, para sua concretização, exigia dois anos de separação de fato ou um ano judicialmente e, agora, pela nova proposta legislativa, será concedido sem qualquer estágio temporal. Até poderá ser pleiteado pela internet. Nenhum conceito é estático. Obrigatoriamente segue o dinamismo necessário para o melhor aperfeiçoamento da vida humana. A própria Constituição Federal, editada há 21 anos, coleciona já, aproximadamente, sessenta Emendas Constitucionais, todas elas resultantes de adequações legislativas favorecendo a convivência social e as necessidades dos cidadãos. Já advertia MAXIMILIANO: As mudanças econômicas e sociais constituem o fundo e a razão de ser de toda a evolução jurídica; e o Direito é feito para traduzir em disposições positivas e imperativas toda a evolução social. Como, pois, recusar a interpretá-lo no sentido das concepções sociais que tendem a generalizar-se e a impor-se? [ 1 ].

    Na senda desta evolução, surge agora a questão que envolve o direito de morrer, com a mesma dignidade do direito de nascer. A moral e o Direito repudiam, pela sua tradição e conceituação, qualquer ato que abrevie a existência de um ser humano, mesmo que enfermo. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito da modalidade de morte.

    A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar do homem resistir a travar discussão a respeito. O modo humano de morrer, percorrer o caminho da longa jornada e saber que a vida, apesar de frequentar todos os sentimentos humanos, é uma preparação para a morte. Mas o que se leva do homem, não é a morte e sim a vida. O homem, por paradoxal que pareça, tem repugnância pela morte. O que se passa na mente das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua intensidade.

    Mas nem sempre assim se apresenta a morte. A respeito, com muita propriedade, salientam os filósofos espanhóis STORK e RICARDO YEPES: Ordinariamente, hoje se morre de duas maneiras: por acidente violento, provocado ou fortuito, ou por doença terminal. Mas, nas ocasiões em que a visita da morte é algo esperado, se procura arrebatar do doente sua própria morte com a benévola intenção de que não sofra. Para tanto, se narcotiza o doente e ele é mantido na ignorância acerca de sua própria situação: é a morte estúpida, na qual a pessoa morre sem dar-se conta, sem assumir livre e responsavelmente o que lhe está realmente sucedendo[ 2 ].

    BETTY MILAN, em recente romance, acompanhando a agonia da morte do marido em um hospital francês, após tentar convencer a médica a praticar a eutanásia passiva, sem o resultado desejado, ponderou: Jacques não pode comer, beber, urinar e respirar naturalmente. Sabe que não há mais nenhuma esperança e não quer continuar. Seria tão fácil liberar Jacques... Basta recusar o furor terapêutico. Mas a Doutora tem medo. Por que isso? Ninguém está aqui para denunciar quem quer que seja. Não tenha medo, Doutora[ 3 ].

    O médico e sociólogo INGENIEROS, nascido na Itália e posteriormente cidadão argentino, antecipou em 1920: Não devemos ocultar que nestes últimos anos, tomou feição particular o problema do direito à morte. Seus termos são, hoje, muito diferentes. Uma dama estadunidense reclamou, dos juízes de Nova York, a autorização, para o seu médico, de por fim aos sofrimentos atrozes que lhe causava uma enfermidade incurável, proporcionando-lhe o eterno descanso da maneira mais suave possível. A petição estranha não foi despachada, mas o futuro nos impõe três probabilidades diferentes, nas quais a situação moral deve ser encarada de forma também diversa[ 4 ].

    Em fevereiro de 2009, a italiana Eluana Englaro, em razão da ação judicial intentada por seu pai e que recebeu a chancela da Corte Suprema da Itália, após viver 17 dos seus 38 anos em estado vegetativo, teve suas sondas retiradas, privando-a do suprimento de água e alimentos Neste mesmo país, na sequência da autorização judicial, o governo apresentou um projeto para que uma pessoa em estado terminal irreversível não seja privada de alimentação e hidratação artificiais, porém, apesar de contar com o apoio da Igreja Católica, encontrou generalizados protestos populares. É semelhante o caso de Terry Schiavo, mulher que viveu em estado vegetativo durante quinze anos nos Estados Unidos e seu marido ingressou com pedido judicial para a retirada das sondas de alimentação, conduta essa não aprovada pelos pais dela. Na Itália o poeta Piergiorgio Welby, portador de uma distrofia muscular há quarenta anos, escreveu o livro Lasciatemi Morire e contou com a colaboração de um médico voluntário para desconectá-lo dos aparelhos.

    Outros países da Europa entoaram o mesmo coro e hoje se discute o Testamento Vital ou Testamento Biológico e ainda a Ordem de Não Reanimação. No vizinho Uruguai, o Congresso aprovou uma lei que levou o nome de vontade antecipada, e confere ao cidadão o direito de decidir por escrito que, em caso de doença terminal, sua vida não seja prolongada artificialmente e poderá, para tanto, nomear um procurador para cumprir sua vontade. Na Bélgica, a eutanásia foi aprovada em 2002 e na última pesquisa realizada pelo governo no ano de 2008, constatou-se um aumento de 42%.

    No Brasil, o projeto do Senador Gerson Camata, que pretende excluir a roupagem de ilicitude da ortotanásia, apresentou um projeto que há nove anos tramita pelo Senado Federal e agora foi aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania daquela Casa. Ganha corpo e segue para a Câmara dos Deputados.

    As pesquisadoras FLORENCIA LUNA, professora da Universidad de Buenos Aires e ARLEEN SALLES, professora da Universidade St. John, em Nova York, que já enfrentaram o tema morte em várias obras, estabelecem algumas condições mínimas para a implementação da morte abreviada nos países em desenvolvimento, que são:

    . um debate público y transparente acerca de las decisiones al final de la vida y su relevância para la sociedad;

    . un serio compromiso com la provisión y el perfeccionamento del cuidado de la salud, incluídos los cuidados paliativos;

    . um mecanismo efectivo para monitorear y controlar estas prácticas[ 5 ].

    No anteprojeto da Parte Especial do Código Penal, de 1984, já sinalizava o legislador a adoção não da ortotanásia, mas sim da eutanásia, desde que o médico recebesse autorização do paciente ou de seus familiares, com a intenção de minorar o sofrimento, em doença irreversível e de morte inevitável. Não vingou. A eutanásia, até há pouco tempo, era vista como a solução mais adequada para por fim ao sofrimento do doente terminal. Levava o nome de eutanásia, com o procedimento da ortotanásia.

    Contrariando a antecipação da morte pela eutanásia, MARIA HELENA DINIZ, com seu insuperável conhecimento, formula vários questionamentos de ordem ética, moral e jurídica:

    A eutanásia é um grande tabu na prática médica. Deveras, como poderia ter o médico a missão de abreviar os dias de seu paciente? Não seria ele um cúmplice da morte? Seria possível a um profissional da saúde atenuar sofrimento, retirando a vida, em caso em que se reconhece a irreversibilidade do quadro em paciente terminal? Poderia o médico, com permissão do paciente ou de seus familiares, antecipar a morte, ante a atrocidade do sofrimento e a inevitabilidade do falecimento?[ 6 ]

    Daí que, nosso Código Penal, elaborado em 1940, erigiu à categoria de crime de homicídio a conduta daquele que, agindo com sentimentos de piedade e compaixão, pratique ato terminativo que venha livrar o paciente da dor e sofrimento.

    O Código Penal Brasileiro, esclarecem MIRABETE e FABRINI, não reconhece a imputabilidade do homicídio eutanásico, haja ou não o consentimento do ofendido, mas, em consideração ao motivo, de relevante valor moral, permite a minoração da pena[ 7 ]. Quer dizer, o profissional da saúde que agir imbuído da intenção piedosa, comete o crime de homicídio, que leva o rótulo de privilegiado em razão do relevante valor social ou moral.

    Faz-se necessária a distinção jurídica entre ortotanásia, eutanásia, distanásia e suicídio assistido. A ortotanásia difere da eutanásia e também da distanásia e do suicídio assistido. A primeira é a suspensão que o médico faz dos meios artificiais para prolongar a vida de um doente terminal, ministrando-lhe, no entanto, medicamentos para diminuir seu sofrimento, além de conferir confortos familiar, psíquico e espiritual. Já a eutanásia, que na sua origem etimológica significa a boa morte, é a antecipação da morte do doente terminal, atenuando-lhe o sofrimento e dores intoleráveis, com a contribuição efetiva de alguém, ministrando-lhe, por exemplo, alguma droga. A distanásia é a morte lenta e sofrida de um paciente terminal, com a utilização de todo arsenal terapêutico, visando, desta forma, prolongar o processo da morte. O suicídio assistido é quando o próprio paciente passa a ser o agente ativo, com a orientação e auxílio de um médico ou terceiro.

    Das formas de decisão sobre a morte, somente a ortotanásia reúne os requisitos de aceitabilidade perante o direito, medicina e religião. Não se coloca em discussão a indisponibilidade da vida e sim o direito do cidadão de definir a respeito do seu fim, buscando a dignidade da morte através do princípio da autonomia. Com o perfil mais humano, sem que haja a antecipação da morte e sim que ela chegue no momento correto, como a boa morte apregoada pela própria etimologia grega.

    A Igreja Católica meteu a primeira cunha no assunto quando editou o documento Declaração sobre a Eutanásia, da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, aprovado em maio de 1980. Nele, considera lícita a conduta do médico que, na iminência de uma morte inevitável, depois de ter lançado mão de todos os recursos existentes necessários, renuncia a tratamento que daria somente um prolongamento precário e penoso da vida, sem, contudo, interromper os cuidados normais devidos ao paciente.

    O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, adiantou-se e pela Resolução nº 185/2006 permitiu ao médico a realização da ortotanásia, isento de qualquer processo administrativo de natureza ética e afastada sua responsabilidade criminal, pois, pelo Código Penal, seria um crime de homicídio. A Resolução foi barrada pela Justiça e seus efeitos suspensos, pois na hierarquia das leis, bateu de frente com o Código Penal.

    O projeto que tramita pela Casa Legislativa define o paciente em estado terminal como sendo aquele portador de doença incurável, progressiva e em estágio avançado, com prognóstico de morte próxima. Paralelamente, institui procedimentos paliativos, mitigadores do sofrimento, com a contribuição de assistência psíquica, social, familiar e espiritual. O paciente em fase terminal de doença passa a ser o responsável pela autorização da ortotanásia e, na impossibilidade, seus familiares ou seu representante legal, para que o médico suspenda os procedimentos desproporcionais e extraordinários destinados a prolongar artificialmente a vida. Se o paciente, quando lúcido, pronunciou-se contrariamente à ortotanásia, será respeitada sua manifestação.

    O projeto, formatado dentro das regras que determinam o bom-senso, além de excluir a ilicitude prevista no Código Penal, humaniza o processo da morte, evitando a angústia dos familiares e o sofrimento desnecessário do paciente. Conta com apoio e vários seguimentos e até mesmo da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) que já autenticou seu nihil obstat.

    Se vingar o projeto, a autonomia da vontade humana passa a ser responsável pela questão valorativa da morte digna. O homem não se manifesta a respeito de seu nascimento, mas é tutelado pela legislação desde a vida uterina. Agora, a decidir sobre sua morte, continua protegido. O homem, na sábia definição de J. VICENTE, tem uma pretensão de imortalidade porque é capaz de amar e querer sempre continuar amando. Podemos amar porque somos imortais, mas sabemos que somos imortais porque podemos amar[ 8 ] .

    Notas de Rodapé :

    1. Carlos Maximiliano. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro,: Forense, 19ªed., 2006, p. 131.

    2. Ricardo Yepes Stork; Javier Aranguren Echevarría. Fundamentos de antropologia: um ideal de excelência humana. Tradução Patrícia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2005, p. 494.

    3. Betty Milan. Consolação .Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 27.

    4. José Ingenieros. A vaidade criminal e a piedade homicida . Trad. Ricardo Rodrigues Gama. Campinas: LZN Editora, 2003, p. 55.

    5. Arleen Salles y Florenia Luna. Bioética: nuevas reflexiones sobre debates clásicos. Buenos Aires: Fondo de Cultura Econômica, 2008, p.218.

    6. Diniz, Marai Helena. O estado atual do biodireito. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 389.

    7. Júlio Fabrini Mirabete; Renato N. Fabrini. Manual de direito penal , vol. 2., 26. 2d. ver. e atual. São Paulo: Atlas, 2009, p. 32.

    8. J. Vicente. El horror de morir .. Barcelona:Tibilado, 1992, p. 305.

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