Réu reincidente e princípio da insignificância: âmbito de (in) aplicabilidade
LUIZ FLÁVIO GOMES
Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP, Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG e Co-coordenador dos cursos de pós-graduação transmitidos por ela. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Twitter: www.twitter.com/ProfessorLFG. Blog: www.blogdolfg.com.br Pesquisadora: Christiane de O. Parisi Infante
Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio; INFANTE, Christiane de O. Parisi. Réu reincidente e princípio da insignificância: âmbito de (in) aplicabilidade. Disponível em http://www.lfg.com.br - 26 de abril de 2010.
A Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou aplicação ao princípio da insignificância para acusado de furtar roupas. Eis a notícia publicada no site do STF:
Por unanimidade, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) negou Habeas Corpus (HC 102088) a D.T.F., preso por furtar um moletom em uma loja e por tentar furtar uma calça em outra. A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul pedia que fosse aplicado o princípio da insignificância ao caso, pois os bens teriam sido avaliados em R$ 213,00.Inicialmente, no momento da prisão, o princípio da insignificância não foi considerado porque o acusado já teria praticado uma série de outros furtos semelhantes.
Para a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, relatora, é claro que isto não serve para caracterizar a reincidência. No entanto, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS) rejeitou o princípio da insignificância justamente porque o acusado já respondeu a ações penais por porte de drogas poucos dias depois de ter conquistado liberdade provisória e voltou a se envolver na prática de outros furtos, conforme os registros policiais. Além disso, admitiu às autoridades ser viciado em drogas.
Para a ministra, os valores dos bens subtraídos não podem ser considerados irrisórios. Ela exemplificou a questão ao dizer que se um jornaleiro tiver cartões de R$ 20,00 furtados durante 60 dias, um valor irrisório passará a ser relevante no final da contagem desse tempo.
A relevância jurídica não é o valor. E neste caso a justificativa foi sempre que há uma reiteração de comportamento nos mesmos moldes, nas mesmas condições, destacou.
Seu voto foi acompanhado por todos os ministros da Turma.
Fonte: , 06 abr. 2010.
A doutrina e a jurisprudência reconhecem que o princípio da insignificância é causa supra-legal de exclusão de tipicidade. Luiz Flávio Gomes[ 1 ] ressalta que a lei brasileira futura deve disciplinar a situação do réu reincidente ou multirreincidente, que continua praticando fatos insignificantes. O citado autor destaca a existência de três situações distintas: 1) a multirreincidência ou reiteração cumulativa; 2) multirreincidência ou reiteração não cumulativa e 3) fato único cometido por um agente reincidente.
Na primeira situação, quando o agente, mediante reiteradas condutas, lesa seriamente o bem jurídico, fica afastada a aplicação da doutrina da insignificância.
Na reiteração não cumulativa o sujeito pratica vários fatos insignificantes, desconectados no tempo, contra vítimas diversas e de forma não cumulativa. Nesse caso não há obstáculo para a incidência do princípio da insignificância (que conta com critérios objetivos).
Na terceira situação (fato único cometido por um agente reincidente) deve ser reconhecida a possibilidade de incidência do princípio da insignificância, pois a insignificância (ou não) do fato independe das condições pessoais do agente (maus antecedentes, reincidência etc.).
Ressaltamos que o exemplo dado pela Ministra Cármen Lúcia (um jornaleiro que tiver cartões de R$ 20,00 furtados durante 60 dias) não foi compatível com o caso sob julgamento. No exemplo dado pela Ministra a vítima seria a mesma, o que inviabilizaria a aplicação do princípio da insignificância, pois haveria reiteração cumulativa. Todavia, segundo a notícia publicada no site do STF, as ações do réu não eram voltadas contra a mesma vítima e, portanto, não havia reiteração cumulativa.
Vinicius de Toledo Piza Peluso[ 2 ] ensina que:
o princípio da insignificância tem a natureza meramente objetiva, sendo erro procedimental grave a análise de elementos subjetivos, pertencentes à culpabilidade do agente especificamente a primariedade -, no momento da valoração do referido princípio. Portanto, determinado que o fato é penalmente irrelevante (atípico), pouco importa, para o deslinde da questão, a personalidade do réu, inclusive porque, no momento da tipicidade, o Direito Penal é um direito do fato e não do autor[ 3 ], sendo, assim, indevida qualquer análise da personalidade do acusado.
O Supremo Tribunal Federal[ 4 ] estabeleceu os requisitos para a incidência do princípio da insignificância, os quais devem ser demonstrados no caso concreto: a) mínima ofensividade da conduta do paciente; b) ausência de periculosidade social da ação; c) reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica provocada.
O mesmo tribunal[ 5 ] já deixou claro que:
O princípio da insignificância que deve ser analisado em conexão com os postulados da fragmentariedade e da intervenção mínima do Estado em matéria penal tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, examinada na perspectiva de seu caráter material.(...)
O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade.
No mesmo sentido da decisão proferida no HC 102088 se posicionou a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça 6 ]:
apesar do furto de diversas barras de chocolate avaliadas em R$ 45,00 poder ser considerada ínfima, não merece a aplicação do postulado permissivo, eis que, a folha de antecedentes criminais do paciente, que indica a condenação por crime de roubo transitada em julgado, noticia a reiteração ou habitualidade no cometimento da mesma conduta criminosa.
Em sentido contrário decidiu a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça[ 7 ]. Do voto do relator para o acórdão, Min. Nilson Naves, transcrevemos:
Ao caso aplica-se ainda o que eu disse no RHC-21.489 (DJ de 24.3.08), a saber:"Sobre a faculdade estatal de punir, escreveu Roxin ('Estudos...', Renovar, 2006, pág. 33):
'A finalidade do direito penal, de garantir a convivência pacífica na sociedade, está condicionada a um pressuposto limitador: a pena só pode ser cominada quando for impossível obter esse fim através de outras medidas menos gravosas. O direito penal é desnecessário quando se pode garantir a segurança e a paz jurídica através do direito civil, de uma proibição de direito administrativo ou de medidas preventivas extrajurídicas.
O recuo do direito penal para trás de outros mecanismos de regulamentação pode também ser explicado com base no modelo iluminista do contrato social. Os cidadãos transferem ao Estado a faculdade de punir somente na medida em que tal seja indispensável para garantir uma convivência livre e pacífica. Uma vez que a pena é a intervenção mais grave do Estado na liberdade individual, só pode ele cominá-la quando não dispuser de outros meios mais suaves para alcançar a situação desejada.'"
Quanto à aplicação do princípio da insignificância para réu reincidente, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal decidiu que[ 8 ]:
A reincidência, apesar de tratar-se de critério subjetivo, remete a critério objetivo e deve ser excepcionada da regra para análise do princípio da insignificância, já que não está sujeita a interpretações doutrinárias e jurisprudenciais ou a análises discricionárias. O criminoso reincidente apresenta comportamento reprovável, e sua conduta deve ser considerada materialmente típica.
Com a devida venia, cada caso é um caso. Mesmo em se tratando de réu reincidente, impõe-se a análise do caso concreto. Todas as circunstâncias devem ser analisadas (qual foi o delito anterior, quando ocorreu o delito anterior, qual a gravidade do delito precedente etc.).
Notas de Rodapé:
[1] GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade . São Paulo: RT, 2009 (Coleção Direito e Ciências Afins, v. 1), p. 103-107.
[2]PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A objetividade do princípio da insignificância . Disponível em: , 24 maio 2001. Acesso em: 14 abr. 2010.
[3]GARCIA-PABLOS, Antonio. Derecho Penal Introducción, Ed. Universidad Complutense, 1995, Madrid, p. 260 e sgts..
[4]STF, HC 91920/RS, 2ª Turma, rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 09.02.2010, DJe-045, 12.03.2010.
[5]STF, HC 100316/SC, 2ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, j. 15.12.2009, DJe-027, 12.02.2010.
[6]STJ, HC 137794/MG, 5ª Turma, rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 29.09.2009, DJe 03.11.2009.
[7]STJ, HC 130851/RS, 6ª Turma, rel. Min. Haroldo Rodrigues, rel. para acórdão Min. Nilson Naves, j. 13.08.2009, DJ 01º.02.2010).
[8]STF, HC 97772/RS, 1ª Turma, rel. Min. Carmen Lúcia, j. 03.11.2009, DJe-218, 20.11.2009. BIBLIOGRAFIA GOMES, Luiz Flávio. Princípio da insignificância e outras excludentes de tipicidade. São Paulo: RT, 2009 (Coleção Direito e Ciências Afins, v. 1). PELUSO, Vinicius de Toledo Piza. A objetividade do princípio da insignificância. Disponível em: , 24 maio 2001. Acesso em: 14 abr. 2010.
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