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    Falsa identidade (art. 307, do Código Penal): uma análise crítica diante do nemo tenetur se detegere - Bruno Haddad Galvão

    há 14 anos

    Como citar este artigo: GALVAO, Bruno Haddad. Falsa identidade (art. 307, do Código Penal): uma análise crítica diante do nemo tenetur se detegere . Disponível em http://www.lfg.com.br - 11 de junho de 2010.

    FALSA IDENTIDADE (ART. 407, DO CÓDIGO PENAL): UMA ANÁLISE CRÍTICA DIANTE DO NEMO TENETUR SE DETEGERE

    Uma leitura puramente positivista do Código Penal, certamente ensejaria a aplicação míope do art. 307, do Código Penal, mas não é este o melhor entendimento.

    Vivemos num Estado Democrático, Social e Humanitário de Direito, e não num Estado de Polícia. Conforme nos ensina o primoroso jurista Luiz Flávio Gomes, Valério Mazzuolli, dentre outros, a leitura do Código Penal deve passar por um filtro constitucional e internacional de direitos humanos (2.º do art. 5.º da CF/88).

    Sua aplicação pura e simples, como se o mesmo fosse um fim em si mesmo, certamente não seria o mais lógico e ideal.

    Luigi Ferrajoli não se cansa de ensinar que uma lei pode ser vigente, mas não ser válida, bastando, neste caso, ser incompatível com a Constituição Federal.

    Foi esse o raciocínio, por exemplo, que o Supremo Tribunal Federal vem usando para entender que não cabe mais prisão civil por dívida do depositário infiel. Isso porque, embora nossas leis (e a própria Constituição) determinem pela aplicabilidade deste meio coercitivo, o Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos) dispõe de modo contrário (art. 7.º, 7)[ 1 ].

    Note que o Supremo Tribunal Federal está afirmando, outrossim, que texto legal não se confunde com norma jurídica. A norma nada mais é do que a extração do conteúdo normativo da lei, e não a singular interpretação de seu texto.

    Para que possamos extrair uma norma de um texto jurídico, devemos interpretá-lo, dentre outros, com a Constituição Federal e com os Tratados Internacionais de Direitos Humanos aplicáveis ao caso e ratificados pela República Federativa do Brasil.

    Dessa forma, cabe ao intérprete buscar a melhor forma de interpretar os dispositivos legais, sobretudo aqueles que privem o cidadão do seu direito de ir e vir.

    Conforme art. 307, do CP, é vedado, sob pena de detenção de 03 meses a 01 ano, ou multa, atribuir-se ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem.

    Não é raro o parquet sustentar que o réu, no momento em que foi apresentado a uma Delegacia de Polícia Civil por policiais militares, ou não, apresenta cédula de identidade de outrem e, por isso, incidiria em tal figura delitiva.

    A cópia da identidade apresentada geralmente consta do processo, sendo que, quando interrogado na fase policial, afirma o acusado que está evadido de regime prisional e com intuito de permanecer mais tempo solto resolveu utilizar o nome de outrem como seu, apresentando para isso uma identidade . Pode ser que diga, outrossim, que assim o fez para ocultar seu passado criminoso e para isso evitar medidas criminais mais drásticas.

    Assim, constata-se que o motivo pelo qual se apresentou como outra pessoa, atribuindo-se identidade falsa, no primeiro exemplo, seria para permanecer mais tempo em liberdade, e não ser identificado como detento foragido do sistema prisional.

    Ora, ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si, de forma a se entender que referida conduta praticada pelo réu é atípica ( nemo tenetur se detegere ).

    O fato de ter dado outro nome à autoridade policial para não ser identificado criminalmente e sofrer as consequências nada mais é do que exercer o direito de não ser obrigado a produzir provas contra si mesmo.

    Este direito está previsto na alínea g do parágrafo segundo do artigo 8º do Pacto de São José da Costa Rica, verbis :

    Artigo 8º. Garantias judiciais:

    2º Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas:

    g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;

    Comentando referido dispositivo, Luiz Flávio Gomes e Valério de Oliveira Mazzuoli (in Comentários à Convenção Americana de Direitos Humanos, São Paulo: RT, 2008, p. 106) afirmam que:

    O direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada faz parte do princípio da não auto-incriminação, que envolve:

    A) o direito ao silêncio ou direito de ficar calado CF, art. , LXIII (é a manifestação passiva da defesa);

    B) direito de não declarar contra si mesmo ;

    C) direito de não confessar Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, art. 14, 3; Convenção Americana, art. 8.º, 2 e 3;

    D) direito de mentir;

    E) direito de não participar de qualquer comportamento ativo que lhe comprometa;

    F) direito de não produzir nenhuma prova incriminadora que envolva seu corpo humano;

    Como se vê, o acusado tem todo o direito de não falar nada (direito ao silêncio); se falar tem direito de nada dizer contra si mesmo ; mesmo dizendo algo contra si tem o direito de não confessar. (grifos nossos)

    Referido Tratado Internacional de Direitos Humanos, conforme já informado, foi ratificado pela República Federativa do Brasil em 1992 (Decreto 678/92) e, mesmo não tendo sido aprovado como uma emenda (3.º do art. 5.º da CF) tem status materialmente constitucional (2.º do art. 5.º da CF), segundo a doutrina de Luiz Flávio Gomes, Flávia Piovesan, Valério Mazzuoli, dentre outros.

    No processo penal a busca pela verdade real é almejada tanto pelas partes como pelo magistrado, mas o Estado não pode buscar essa verdade a qualquer preço, tampouco exigir que o acusado se auto-incrimine para que a prova seja produzida.

    Assim, interpretando o art. 307, do CP, de acordo com o que prevê a Constituição Federal e a Convenção Americana de Direitos Humanos (juízo de dupla compatibilidade vertical), ninguém é obrigado a produzir nenhum comportamento ATIVO incriminador , ou seja, ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.

    Em excelente obra, Rogério Sanches da Cunha (in Direito Penal, parte especial, volume 3, São Paulo, RT, 2008, p. 356), cita o entendimento de Mirabete e Celso Delmanto sobre a solução a ser dada ao presente caso concreto, vejamos:

    Na lição de Mirabete, não há crime, aplicando-se, no caso, o princípio nemo tenetur se detegere. Celso Delmanto também pugna pela atipicidade da conduta, aduzindo que a ação constitui exercício constitucional do direito da autodefesa.

    O artigo 307, do Código Penal, como visto, dispõe que aquele que se atribuir ou atribuir a terceiro falsa identidade para obter vantagem, em proveito próprio ou alheio, ou para causar dano a outrem , comete o crime de falsa identidade.

    É notório que em nosso direito o acusado não é obrigado a depor sob compromisso, e este não é responsabilizado por eventual perjúrio que venha a praticar.

    Ademais, se o acusado tem o direito ao silêncio, recusando-se a se pronunciar sobre qualquer aspecto da acusação que lhe seja feita, justamente no exercício do direito de defesa constitucionalmente previsto e valendo-se o mesmo do estado de inocência presumidamente existente em seu favor, com igual motivo se haverá de considerar como não ocorrido crime em decorrência dos informes que preste a respeito de sua identidade.

    Neste sentido, é o entendimento da doutrina e de nossos tribunais:

    Falsa identidade Declinação de falso prenome na polícia Intuito de autodefesa Configuração Impossibilidade Aquele que, ao ser identificado na polícia, declina falso prenome, procurando defender-se torna anódina a conduta, impossibilitando a configuração do crime previsto no art. 307 do CP (RJTACRIM-SP, v. 14, 78 Rel. Emeric Levai).

    Falsa identidade Delito não configurado indivíduo que ao ser autuado em flagrante fornece dados inexatos sobre sua identidade Expediente usado para evitar o processo contra si e suas conseqüências Absolvição mantida Inteligência do artigo 307 do CP(Código Penal e sua interpretação Jurisprudencial, 1990, de Alberto Silva Franco e outros, p. 1429, n. 902).

    O agente que afirma falsamente seu nome e sua menoridade para frustar a prisão em flagrante não pratica o crime de falsa identidade, pois a expressão vantagem, mencionada no artigo 307 do CP, inclui tanto de natureza patrimonial como moral, mas não compreende o propósito de autodefesa do réu (TACRIM-SP AC 935749-0- Rel. França Carvalho RJDTACRIM 27/98).

    A manobra defensiva, intuitiva, de alegar uma idade inferior a 18 anos para escapar ao flagrante, não atinge o bem jurídico da fé pública (TACRIM-SP AC 436.117- 9 Rel. Mafra Carbonieri JUTACRIM 90/228).

    O delito do art. 307 do CP não se tipifica se o agente se atribui falsa identidade em autodefesa ao ser preso (TACRIM-SP AC 434333- 5 Rel. Mário Vitiritto JUTACRIM 88/361).

    STJ: Não configura a conduta típica do art. 307, do CP, o fato de a pessoa, indiciada, se atribuir falsa identidade perante a autoridade policial, porquanto trata-se, na verdade, de mecanismo de autodefesa, amparado, em última análise, pelo direito constitucional de permanecer em silêncio (RT 814/570).

    STJ: (...) Não comete crime previsto no art. 3077, doCPP, aquele que atribui falsa identidade perante autoridade policial como recurso de defesa para encobrir maus antecedentes, pois tal postura encontra-se ao abrigo da garantia constitucional que lhe assegura o direito ao silêncio quando inquirido pela autoridade pública (RT 788/551).

    TJ/MG: O agente que no momento de sua prisão em flagrante, se atribui outro nome não comete o crime de falsa identidade, previsto no art. 307, do CP. Tal gesto deve ser interpretado como autodefesa, e não como prática delitiva (RT 797/648).

    Ora, ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra si, tampouco se auto-incriminar. Atribuir a si falsa identidade as vezes é o único meio possível ao réu de tentar evitar suposta restrição criminal.

    Aliás, a respeito do tema já proclamaram nossos Tribunais:

    "Não se tipifica o delito do art. 307 do CP quando o agente se atribui falsa identidade tão-só como meio de autodefesa no ato de sua prisão. Na exteriorização desse propósito ante a pretensão estatal de punir, a mentira a de ser equiparada ao direito de calar a verdade" (TACRIM-SP - Rel. Gonzaga Franceschini - JUTACRIM 91/404).

    Assim, de acordo com a teoria da tipicidade conglobante , quando uma norma do direito permite ou fomenta determinada conduta, este mesmo direito não pode proibi-la, devendo ser tido eventual fato praticado como atípico. Assim, se ninguém é obrigado a produzir prova contra si, não há que ser reconhecido o crime do art. 307, do CP.

    Notas de Rodapé:

    [1] Referido tratado foi ratificado pela República Federativa do Brasil em 1992

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    2 Comentários

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    Ora que absurdo, ninguém é obrigado a se incriminar dentro do processo o que é muito diferente de se identificar, então partindo desse princípio ele poderia produzir provas contra terceiros já que segundo essa interpretação sem lógica pode mentir sobre sua identidade. E se for declarado culpado posteriormente na sequencia do processo então teria que responder por calúnia já que envolveu terceiro por sua identificação falsa. Não possui nenhuma lógica essa teoria. continuar lendo

    Aqui é o Brasil Mauro.

    Poderia ao menos ser criada uma punição pecuniária para uma pessoa que omitisse ou mentisse seus dados. Nos moldes de uma multa de trânsito, mas seria para a pessoa.

    Mas essa doutrina citada é estranha mesma. Vou buscar outras fontes. continuar lendo