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18 de Abril de 2024
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    Possível constitucionalidade do art. 156, I, do CPP, com a redação dada pela Lei 11.690/08 - Debora Fernandes de Souza Melo

    há 15 anos

    Como citar este artigo: MELO, Debora Fernandes de Souza Melo. Possível constitucionalidade do art. 156 , I , do CPP , com a redação dada pela Lei 11.690 /08 . Disponível em http://www.lfg.com.br . 25 de novembro de 2008.

    De início, cabe mencionar que o Código de Processo Penal brasileiro, Decreto-lei 3.689 , de 03 de outubro de 1941, por força da influência ditatorial da época (modelo do Estado Novo, sob a égide da Constituição Federal de 1937), em diversos momentos em seu texto exterioriza os ideais inquisitórios que fundamentavam o processo penal, apresentando o réu/acusado/indiciado como mero objeto da acusação e, ao mesmo tempo, concedendo ampla liberdade de atuação às autoridades policial e judiciária, nos termos dos artigos 26 , 156 , 196 , etc.

    Com o advento da Constituição Federal de 1988 e as conseqüentes alterações do discurso e implementações de direitos e garantias individuais irrenunciáveis, tal diploma infraconstitucional passou a ser interpretado de acordo com a nova sistemática: a dignidade da pessoa humana erigiu-se a fundamento da República e o Estado democrático de direito solidificou-se como instituto reitor das relações entre o Estado e os cidadãos. Diante disso, fez-se necessário que os dispositivos legais passassem pelo filtro da recepção constitucional, travando-se discussões judiciais, doutrinárias e acadêmicas até hoje. Nesse sentido já era a controvérsia acerca do disposto no artigo 156 , do CPP e sua antiga redação e a atividade probatória efetivada pela autoridade judiciária: "A prova da alegação incumbirá a quem a fizer; mas o juiz poderá, no curso da instrução ou antes de proferir sentença, determinar, de ofício, diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante ". Tal dispositivo sofreu alteração pela Lei nº 11.690 /08, repetindo que"a prova da alegação incumbirá a quem a fizer ", facultando-se ao juiz, de ofício o seguinte:

    "I ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; ."

    "II determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para dirimir dúvida sobre ponto relevante

    Parcela considerável da doutrina nacional entendia, com base no disposto na antiga redação do artigo transcrito sua total recepção pela Lei Maior brasileira, sendo a atividade probatória levada a efeito pelo julgador reflexo da regra segundo a qual o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova, não restando infração a nenhuma garantia constitucional, uma vez baseada em norma de interesse público, sendo, por isso, indisponível.

    Como por exemplo, Guilherme de Souza Nucci [ 1 ], para quem a atuação de ofício pelo juiz"trata-se de decorrência natural dos princípios da verdade real e do impulso oficial ". Não deve o magistrado, segundo o autor," ter a preocupação de beneficiar, com isso, a acusação ou a defesa, mas única e tão-somente atingir a verdade ".

    Em sentido contrário, entretanto, não menos abalizados estudiosos [ 2 ] alegavam que, se o acusado é presumido inocente até sentença penal condenatória transitada em julgado (artigo , LVII, CRFB); se compete privativamente ao Ministério Público a promoção da ação penal pública, segundo o princípio da oficialidade da ação penal insculpido no artigo 129, I, CRFB; se a Carta Política adota o sistema acusatório para o processo penal, devendo o julgador ser imparcial e autônomo em relação à acusação; como aceitar a atividade probatória exercida ex oficio pela autoridade judiciária? Se no processo penal, como garantia individual que este ramo representa, vigora o princípio do in dubio pro reu, como justificar a atividade do magistrado que, na dúvida, não absolve, mas determina produção de provas? Entendia-se que o ônus da prova era da acusação, como se depreende do HC 27.684 , de relatoria do Min. Paulo Medina, do STJ, in verbis:

    " (...) O órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de Processo Penal . 3 . Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que impõe ao acusado a prova de sua inocência (...) É notório que o órgão acusador tem a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua inocência. É característica inafastável do sistema processual penal acusatório, como retratado no art. 156 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, afirma AFRÂNIO SILVA JARDIM: 'O réu apenas nega os fatos alegados pela acusação. Ou melhor, apenas tem a faculdade de negá-los, pois a não impugnação destes ou mesmo a confissão não leva a presumi-los como verdadeiros, continuando eles como objeto de prova de acusação. Em poucas palavras: a dúvida sobre os chamados fatos da acusação leva à improcedência da pretensão punitiva, independentemente do comportamento processual do réu. Assim,o ônus da prova, na ação penal condenatória é todo da acusação e relaciona-se com todos os fatos constitutivos do poder-dever de punir do Estado, afirmado na denúncia ou queixa; conclusão esta que harmoniza a regra do art. 156 , primeira parte, do CPP com o salutar princípio in dubio pro reu. "

    Esta decisão do Superior Tribunal de Justiça traduz perfeitamente a idéia de que o processo penal é, antes de tudo, um sistema de garantias face ao uso do poder do Estado. Também no Supremo Tribunal Federal, HC 73338 , de 19/12/1996. No mesmo sentido, TJ/RJ, HC 2007.059.08360 , 1ª Câmara Criminal, Des. Carlos Augusto Borges, de 29/01/2008.

    Ressalte-se que já se deveria entender que a atribuição do juiz em determinar de ofício diligências para dirimir dúvidas sobre ponto relevante tem caráter meramente complementar e supletivo, diante do intuito de"obter o equilíbrio entre o interesse social e o da defesa individual "(item XVIII, Exposição de Motivos do CPP) e da prioridade das normas constitucionais relativa à plenitude de defesa.

    Com a alteração no dispositivo, tais indagações permanecem, mas com agravantes, senão vejamos. Repete-se aqui o equívoco de se permitir ao juiz atividade de natureza eminentemente persecutória sem processo, o que significa um gravíssimo atentado aos postulados do sistema acusatório adotado hoje pelo Brasil (salvo nos casos de foro por prerrogativa de função nos Tribunais Superiores, em que é presidido pela magistratura).

    A fim de livrar o hodierno art. 156 , do CPP da mácula de inconstitucionalidade, há de se perfilhar uma interpretação consentânea com o sistema acusatório, que deriva de nossa Constituição . Ainda que o caput desse artigo generalize a possibilidade de o juiz agir de ofício nas duas situações previstas (incisos I e II), relevante ressaltar que, no caso do inciso I, o juiz só poderá agir quando provocado pelo exercente do direito de ação (portanto, com processo em curso) e no resguardo de uma prova pertinente e importante em vias de perecer (arts. 225 do CPP e 846-851 do CPC). Tal interpretação se faz necessária, na medida em que admitir que o juiz, de ofício, possa ordenar antes do início da ação penal a produção antecipada de provas, seria aceitar a volta de um processo penal inquisitório, o que contrariaria nosso atual sistema de direitos e garantias previstos na"Constituição Cidadã"de 1988 (a primeira fase da persecução penal é que é inquisitiva, sendo presidida, em regra, pela autoridade policial). Tal conduta acabaria por violar, a um só tempo, os princípios da inércia, inerente ao sistema acusatório (visto que a ação seria iniciada por parte ilegítima), da iniciativa das partes e o princípio acusatório, o da imparcialidade do juiz (tendo em vista que estaria investigando, adotando comportamento tipicamente inquisitivo, o que lhe é vedado constitucionalmente), o do contraditório, sem se mencionar o próprio princípio do Estado democrático de direito.

    Nesse diapasão, deve-se entender o dispositivo em comento (art. 156 , I , do CPP), de acordo com uma interpretação conforme a Constituição , ou seja, a ordem para a produção de prova antecipada de ofício só poderá ocorrer no curso da ação penal, diante do sistema acusatório e de um juiz ativo, que prima, não por uma verdade real (que sabemos ser uma utopia), mas por uma verdade mais próxima o possível da realidade (por isso admitir-se a possibilidade que seja a ordem de ofício quando já haja processo), assegurando-se a ampla defesa.

    Há, no entanto quem entenda [ 3 ] não ser possível que o juiz aja de ofício, nem mesmo durante o processo, só podendo determinar a mencionada produção antecipada, se isto for requerido pela parte interessada, como por exemplo, Eugênio Pacelli de Oliveira. Em entrevista à revista OAB in Foco, o autor defende que o art. 156 da Lei 11.690 permite que o juiz produza provas contra o réu viola o princípio acusatório, já que o ônus da prova para condenar seria do MP:

    " Não só viola o sistema acusatório, como incentiva uma cultura que deve ser superada no Brasil. O juiz criminal não deve ocupar função de proeminência na persecução penal. Existe um órgão específico para cuidar disso (o MP), no que é auxiliado suficientemente pela Polícia, indevidamente denominada "Judiciária". A Polícia atua com o Ministério Público e não com o Judiciário. O juiz deve ser o juiz das liberdades públicas, isto é, deve atuar preservando as garantias individuais, antes da decisão final, e aplicando o Direito Penal, quando for o caso, no exercício, então, de função tipicamente jurisdicional. Questões relativas à qualidade da prova, para fins de condenação e de acusação, não dizem respeito ao juiz, ao menos no que se refere à produção dela (prova). Jurisdição não é investigação e não é acusação. Tampouco é defesa, mas, sim, o julgamento de uma questão penal segundo o Direito válido ."[ 4 ]

    Por fim, observe-se que nada de novo traz o legislador (no mesmo inc. I) ao ordenar que se obedeça à"necessidade, adequação e proporcionalidade ", visto que tais noções já estão contidas nos conceitos de fumus boni juris e periculum in mora, inerentes às medidas cautelares, como é a presente, e ao próprio e relevantíssimo princípio da proporcionalidade, que deve acompanhar os atos em geral em um Estado Democrático de Direito.

    1. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado . 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.

    2. GOMES, Luiz Flávio, Manuais para Concursos e graduação vol. 6 Col. Direito Processual Penal São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005; MOREIRA, Rômulo de Andrade, Direito Processual Penal , Salvador: Ed. Juspodivm, 2007.

    3. GOMES, Luiz Flávio, CUNHA, Rogério Sanches e PINTO, Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei de Trânsito , São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

    4. Oab entrevista Eugênio Pacelli de Oliveira e Rodrigo Iennaco sobre a reforma do CPP : disponível em: http://www.oabuberlandia.org.br/oab8.qps/newsview/B575A80A5DCFFAFA0325747800701AC9

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